Ela chega aos 92 anos com a simpatia e a alegria de sempre. Cumprimenta a todos sorrindo, às vezes dando gargalhadas, lembrando de alguma proeza. Carioca mais goiana que conheço, é uma pessoa especial, que sabe curtir cada momento, cada pessoa. Só a saúde continua exigindo cuidados.

Há mais de 10 anos escrevi o texto abaixo, quando ela comemorava seus 80 anos, e já no título procurei ser fiel ao seu espírito comunicativo. Dizia que era a garota do amigo Ipanema Siqueira e não a do bairro carioca.

Maria Délphica Sanches Siqueira (Mariazinha)

Os 80 anos da Garota do Ipanema

Carioca que passou a vida quase toda em Goiânia, mas que ainda não perdeu o sotaque, numa vida dividida em duas partes, distintas e próximas ao mesmo tempo, por ter sido casada com dois irmãos e deles ter ficado viúva. Sobraram as lembranças, de tempos diferentes e próximos, pela saudade deles e a presença de seis filhos, que sempre foram a sua razão de ser, e agora dos 14 netos e dois bisnetos, mais os dois que estão chegando. Assim é Maria Délphica Sanches Siqueira, nome pomposo, pelo qual poucos a conhecem, e Mariazinha, a figura extrovertida e admirada por todos que convivem com ela, por sua espontaneidade e simpatia. Ela morou quase o tempo todo de sua presença na Capital goianiense no bairro de Campinas, a Campininha que ela tanto adora, e chega aos 80 anos como essa presença marcante que todos apreciam.

Mariazinha Siqueira e Ipanema, no casamento

Quando se casou, pela primeira vez, foi uma mudança radical em sua vida. Saiu da então Capital da República, o Rio de Janeiro, para vir morar numa cidade que praticamente estava nascendo, Goiânia, na época com pouco mais de 50 mil habitantes e carente em todas as áreas, como de infraestrutura – água tratada, esgoto, ruas asfaltadas, escolas de qualidade e postos de saúde – e mesmo opções de lazer. Essa decisão é apontada por sua melhor amiga, Adelaide Sousa Morais, como um ato heroico. “Ela é uma heroína, uma vencedora. Quando se mudou para Goiânia quase tudo estava por fazer. Ela deixou uma grande cidade, rompendo com um mundo civilizado. Foi uma lutadora, uma pessoa admirável”, disse, para completar: “Muito sociável, muito alegre, Mariazinha teve um começo de vida difícil, deu a volta por cima, adaptando-se na nova vida que assumiu e vencendo”.

POUCAS LEMBRANÇAS

As lembranças do Rio de Janeiro são poucas e vão ficando distantes na memória. Ela nasceu no então aristocrático bairro de Santa Tereza, onde moravam os ricos da época, no dia 26 de outubro de 1926, num casarão com três pavimentos – o porão, o primeiro e o segundo andares –, hoje tombado pelo Patrimônio Histórico e sendo utilizado apenas para eventos. Seus pais eram pessoas simples: Nosor de Toledo Sanches, paulista de Iguape, e Emília Lima Sanches, sergipana de Aracaju – “do tempo dos escravos”, como recorda –, ele como empregado do Lloyd Brasileiro, companhia marítima, onde ficou por 30 anos, e ela cuidando da casa e das filhas, além de fazer doces que eram vendidos nas redondezas. Mariazinha era a mais velha de três irmãs – depois vieram Marília Dircéia (Tetê) e Maria José. Elegante – “a camisa podia estar rasgada atrás, mas ele estava sempre de paletó”, lembra –, Nosor escreveu quatro livros de poesia, era o orador oficial da empresa e fazia os discursos de improviso. Seu salário era pequeno, como agente administrativo, e chegou a assessor da Diretoria.

Os pais de Mariazinha Siqueira, Emília de Lima e Nosor de Toledo Sanches

A infância e a juventude foram passadas nesse casarão, numa rotina cheia de regras e limitações, com poucas amigas e saindo raramente. A fiscalização dos pais, rígidos na educação, era constante e, as brincadeiras, as comuns da época, como pular amarelinha. Com isso, aprendeu a fazer tricô, atividade que a acompanhou por toda a vida. Na escola, chegou a terminar o comércio, correspondente hoje ao segundo grau e que chamavam de propedêutico. Fez alguns cursos profissionalizantes no DASP.

ENCONTROS

Em 1943 a família se mudou para Iguape, SP, terra natal do pai – a viagem, num navio pequeno, o “Aspirante Nascimento”, foi longa: durou um dia e uma noite. A cidade estava em festa, quando chegaram; lá eles passaram um ano e ela conheceu o seu primeiro namorado e também primeiro marido, José Siqueira, um goiano que estava servindo no 6º Batalhão de Caçadores (BC), naquela cidade, e que acabou adotando o apelido de “Goiano”. Charmoso, simpático e que gostava da boemia, ele a conquistou fazendo serenatas e escrevendo cartas – era muito romântico, tinha uma letra bonita e essa função o poupou de tarefas mais árduas no Exército. Foi próximo à cidade que houve o bombardeio do submarino brasileiro, que levou o Brasil a entrar na guerra.

Mariazinha Siqueira e Goiano

Eles começaram a namorar, o pai dela não quis e conseguiu a transferência de Goiano para Caçapava, SP, na 11ª Força Expedicionária enviada para a Itália, com a guerra já chegando ao seu final – de lá ele escrevia cartas para Mariazinha, nas quais falava de amor e também dos horrores da guerra, ele que tinha a função de anotar e relatar as baixas no grupo. As imagens e o intenso bombardeio ficaram, para sempre, em sua memória.

Expedicionário, no retorno ao Brasil passou pelo Rio, os dois se encontraram algumas vezes, e ele voltou para Goiás, quando mantiveram intensa correspondência. Nos primeiros momentos ninguém notou o mal que a guerra havia lhe causado. Ele chegou a passar algum tempo na fazenda de seu melhor amigo, Odon Rodrigues de Morais, e depois foi ao Rio, para pedir Mariazinha em casamento. Ficaram noivos em 1946 – os tios dela não queriam, alegando que em Goiás “só tinha índios e onças nas ruas”, mas não conseguiram dissuadi-la – e no ano seguinte eles se casaram, numa cerimônia muito bonita, na Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro, com toda a pompa, e recepção na casa dos pais dela. De Goiás, apenas a sogra, Ana das Dores Morais (Donana), esteve presente. Jonas Siqueira, o sogro, não pode ir.

DESENCONTROS

O casal veio morar em Goiânia – Goiano era funcionário da Legião Brasileira de Assistência (LBA). Primeiro, moraram numa casinha do IAPC, na Av. Paranaíba, na região central da cidade, ainda sem asfalto, e ela se lembra de um episódio com seu pai, que ficou um mês na cidade – “Um dia, Papai saiu, de sandálias, para dar uma volta e quando retornou os seus pés estavam sujos de terra”. O primogênito do casal, José Siqueira Filho, nasceu em 1947; e o segundo, Luciano Sanches Siqueira, em 1950, quando começam os primeiros desencontros, a manifestação de agressividade que resultou da guerra. Uma das visitas que recebeu foi da mulher do então governador Jerônimo Coimbra Bueno.

Na época, as lembranças dos momentos difíceis na Itália começaram a perturbá-lo, aumentando os desencontros entre o casal e acentuando o que classificaram como “traumas de guerra”, que exigiam tratamento especializado, que Goiânia então não oferecia. Por isso, o casal, com os dois filhos, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde eles tiveram mais dois filhos, Nosor e Tadeu. Na Capital Federal ele esteve em tratamento numa clínica e, depois, num hospital do Exército.

Certo dia, de 1953, ela já gorda do Tadeu, Goiano sumiu de dia e só foi encontrado no início da noite, quando foi levado de volta para a clínica.

“– Graças aDeus vamos dormir sossegados esta noite”, disse o pai dela, Nosor.

Mas não foi o que aconteceu. Lá pela 22h, Mariazinha sentindo muitas contrações, seu pai saiu atrás de um táxi; como era noite, poucos paravam, mas um carro atendeu, a mãe explicou a situação e ele aceitou levá-las ao hospital. O motorista disse-lhes que estava vindo de uma sessão espírita. As duas entraram no carro, ele as levou à Maternidade Carmela Dutra, da rede pública, elas desceram e pediram para ele aguardar um pouco, até serem atendidas. Quando a mãe voltou para agradecer, o porteiro estranhou dizendo que ninguém havia estado ali. Mariazinha se sentiu abençoada por Deus.

– “Tadeu nasceu, um mês depois ela o levou para o pai conhecer, e ele, vendo aquela criança ‘lindíssima, bem-vestida”, como ela se recorda daquele momento, elogiou a sua beleza.

O irmão de Goiano, Ipanema de Siqueira, esteve no Rio e voltou para Goiânia com o filho mais velho do casal, Goianinho. Mariazinha, Luciano, Nosor e Tadeu ainda ficaram uns meses no Rio. Logo, Goiano também retornou a Goiânia, onde se manteve em tratamento.

Um dia, ela recebeu no Rio o telefonema da mulher do médico, Raul Rassi, Rosinha, dizendo que Goiano não estava bem, quando na verdade ele já tinha morrido, e que era para ela vir. Teve tempo apenas de arrumar as malas para pegar o avião para Goiânia. Tinha, então, 28 anos.

Mariazinha Siqueira com os filhos Ricardo, Fernando, Goianinho, Tadeu, Luciano e Nosor

RAINHA

Ela ficou uns meses na cidade, antes de retornar ao Rio.

Mulher bonita, elegante, inteligente e sempre simpática, ela logo conquistou a todos da família. Loira, esbelta, olhos azuis, vaidosa, ela despertava a atenção por onde passava, em especial do cunhado mais velho, e nessa aproximação teve a aprovação de todos. Alguns chegaram a comentar: “Bem que o Ipanema podia casar com ela, para ajudá-la a cuidar dos quatro filhos. Ele irá apoiá-la, manter os filhos próximos e a família unida”.

Solteiro, comerciante, bem-sucedido nos negócios, Ipanema tinha uma papelaria, que vendia de tudo, de anzol a bicicleta, e era muito disputado pelas moças ricas do bairro, e tinham a aprovação da mãe dele.

– “Foi no ombro amigo do cunhado que ela encontrou o parceiro para compartilhar as responsabilidades da vida”, registrou sua irmã Maria José Lima Toledo, no livro “Fagulhas de uma saga”.

Quando retornou ao Rio os dois praticamente estavam namorando, e ele ia sempre lá visitá-la e aos sobrinhos, num relacionamento que foi se estreitando.

Em 1955, num Congresso Eucarístico no Rio, Ipanema, que era muito católico, aproveitou a oportunidade para conversar com os padres a sua situação, ao manifestar o seu desejo de se casar com a cunhada viúva – também católica, hoje com umas 15 imagens de santo em seu apartamento –, e recebeu o consentimento dos religiosos presentes. O casamento aconteceu no final daquele ano. O primeiro filho deles, Luiz Fernando, nasceu em agosto de 1956.

Eles moraram os quatro primeiros anos na casa da sogra dela. Próxima de dona Gercina Borges Teixeira, mulher de Pedro Ludovico, Donana esteve com ela e conseguiu que Mariazinha assumisse a vaga de Goiano na LBA, onde ficou até se aposentar, e muito bem, segundo ela. Conquistou grandes amizades, em especial pelo trabalho que realizava, no contato direto com as pessoas pobres, recebendo muito carinho das pessoas que atendia, o que marcou muito a sua vida. Ela chegou a fazer o registro de nascimento de quase todos os seus netos, o que vem citado em suas certidões como testemunha – avó paterna. A cunhada, Tilza, criou o Grupo Escolar Duque de Caxias, em Campinas, que dirigia, e ali Mariazinha lecionou por quatro anos, além de ter sido secretária da escola.

Em seguida, Ipanema comprou uma casinha, onde nasceu o segundo filho, Ricardo, e ali ficaram uns tempos. Depois compraram uma casa maior, na Av. Pará, que tem até hoje, e sua grande paixão continua sendo o bairro de Campinas, de onde se mudou uma vez, para o apartamento no Edifício Cíntia, no Setor Oeste, ali ficando uns três anos, voltou para a Campininha, até ir para o atual apartamento. Por ela, voltaria a morar em Campinas.

Foram 47 anos de uma vida de rainha que Ipanema lhe proporcionou, como gosta de lembrar. “Não encontro outro Ipanema”, disse, saudosa, reafirmando o que sempre diz a sua empregada Dora, que trabalha para ela há 21 anos. Ele gostava de lhe dar presentes. “Todos os meses tinha um capricho para mim. Com isso dei para cada neta, aos seus 15 anos, uma jóia, guardada nesse período”.

Com grande visão de negócios e muito correto em suas atividades, Ipanema nunca pagou nada em cartório. A Papelaria, além do sustento da casa, serviu de atividade prática para os filhos, e todos trabalharam com ele, o que lhes proporcionou um aprendizado, mas nenhum teve o seu tirocínio para os negócios. Ao assumir os quatro sobrinhos e juntá-los aos dois filhos, ofereceu a todos uma chance de trabalhar no comércio, mas apoiou quando cada um decidiu, por si, seguir outra atividade, optando por três áreas, que exigiam curso superior: Engenharia (três), Odontologia (dois) e Medicina (um).

Essa intensa vida de união e felicidade, participando de reuniões sociais, do Lions e viagens para a praia e várias regiões do País – ao Rio só voltou a passeio e nunca quis ficar lá, pois morar, para ela, só em Goiânia, de onde não quer sair –, só veio a ser ameaçada em 1995, quando ele foi acometido de esclerose. A partir daí passou a exigir cuidados médicos permanentes, ao ponto dela instalar, em seu apartamento no Setor Oeste, onde ainda mora, um centro médico, com cama especial, aparelhos de respiração e o trabalho de três profissionais de saúde. Esse quadro, que foi se agravando, durou oito anos. Mariazinha permaneceu ao seu lado esse tempo todo, com garra e altivez, orando e mantendo-se forte. Ipanema morreu em 2003.

Feliz consigo mesma, ela não reclama de doenças. “Só sou diabética, hipertensa e tenho osteoporose”, brinca. Voluntária, fazendo peças de tricô para os idosos da Vila São Cottolengo, de Trindade e para crianças pobres de creches, Mariazinha leva uma vida normal, sem maiores preocupações para os filhos, noras – “me dou bem com todas” – e netos, que estão sempre por perto, cobrindo-a de atenção e carinho, como agora, nos preparativos para a comemoração dos seus 80 anos.

Descendentes

O filho Goianinho casou-se com Rosa e tiveram duas filhas: Fernanda, que se casou com Daniel e tem três filhos: Sofia, Valentina e Theo; e Anna Paula, que se casou com Zaconeta e tem dois filhos: Victor e Maria Paula.

Luciano casou-se com Deusa e tiveram três filhos: Luciana, que se casou com Thiago e tem dois filhos: Júlia e Caio; Gustavo, que se casou com Dany; e Bruno, que se casou com Carol e tem duas filhas: Luíza e Laura, e esperam o terceiro filho, desta vez um homem.

Nosor casou-se com Deca e tiveram dois filhos: Murilo, que se casou com Marianne e esperam a primeira filha, Alice; e Camila, que se casou com Rodrigo e tem dois filhos: Yasmin e Mateus.

Antônio Tadeu casou-se com Joana e tem quatro filhas: Juliana, que se casou com Bruno e tem dois filhos: Nina e Romeu; Lívia, que se casou com Daniel e tem uma filha: Cora; Marília e Vanuza.

Fernando casou-se com Eliza e tem dois filhos: Luiz Fernando, que se casou com Blenda e tem um filho: Luiz Felipe; e Marcela que se casou com Daniel.

O caçula Ricardo casou-se com Olga e tem uma filha, Ludmilla, que casou-se com Lucas.

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