Família de Guido Di Giovannantonio: Maria, Veneranda (de branco) e Natalina (ao centro), ao fundo. As crianças Antonio e Concetta (esq), Alfredo (colo) e Franco, ao centro

Colonia italiana em Goianira 

Agricultores, sem apoio, abandonaram a produção

A proposta de trazer agricultores europeus para trabalhar a terra no Brasil, então um imenso espaço vazio a ser ocupado com produção agrícola, tinha tudo para dar certo em Goiás, em especial nos arredores da nova Capital goiana, que estava sendo implantada. No entanto, o projeto de colonização agrícola não avançou, a acolhida não foi como se esperava, faltaram as condições prometidas e os imigrantes se sentiram abandonados, o que os obrigou a buscarem alternativas de sobrevivência em outros locais. Hoje é possível indicar que faltaram planejamento, determinação e o apoio material e financeiro às 25 famílias de italianos que se dispuseram a deixar seu país num momento delicado de reconstrução nacional, do pós-guerra. Eles vieram para uma região que não conheciam para se instalarem e produzir numa área de 200 alqueires na região de Mumbuca, distrito de Goianira, no início da década de 1950, e o projeto não se viabilizou.

Italianos e construções da Citag em Rio Verde

A história da colônia italiana de São Geraldo ainda não foi contada, e muito, em termos de dados, já se perdeu, reconhece o goianiense Rodrigo Di Giovannantonio Graziani, zootecnista e neto de dois pioneiros nessa empreitada. Ele leu documentos, livros e relatórios, e coleta depoimentos para construir a trajetória dos antecedentes. Já tem algumas pistas e quer mais dados para montar esse quebra-cabeça, lamentando não ter tido essa ideia quando seu pai, Antonio Graziani, ainda era vivo, pois iria lhe dar informações preciosas a respeito. Com 27 anos ao chegar ao Brasil, ele havia atuado na Aeronáutica italiana e tinha desertado, por não concordar com as políticas do ditador Benito Mussolini.

Giuseppe Benedini e Matteo Arquilla, no livro “Na toca do jaguar”, registram a política de migração adotada pelo Governo brasileiro ao final da II Guerra Mundial. Com a Europa destruída, sua economia arrasada e as famílias sem perspectivas, essa iniciativa permitiu a vinda de muita gente, mas não ofereceu o instrumental para que pudessem produzir, como afirmaram participantes dessa empreitada. Os italianos criaram uma cooperativa, para dar suporte à iniciativa, insuficiente para assegurar resultados positivos no curto prazo. Não receberam as casas para instalarem suas famílias; as terras não eram doadas, e sim vendidas para pagamento com a produção, o que trouxe dificuldades para muitos; o financiamento não correspondeu; e os problemas acabaram se acumulando.

Família de Guido Di Giovannantonio: Maria, Veneranda (de branco) e Natalina (ao centro), ao fundo. As crianças Antonio e Concetta (esq), Alfredo (colo) e Franco, ao centro

Parte da história começa em 1948 quando dirigentes da Cooperativa italiana de Técnicos Agricultores de Lanciano (Citag), região de pequenos produtores rurais, decidem buscar alternativas aos seus cooperados. O presidente Giambattista Bracci, o vice Costantino Graziani e o técnico agrícola Augusto Imazio vieram, de avião, conhecer o Brasil e o Paraguai. No Rio de Janeiro, antes da reunião com os técnicos dos Ministérios das Relações Exteriores e da Agricultura brasileiros para discutir o assunto, encontraram o governador Jerônymo Coimbra Bueno, que os convidou a conhecer Goiás. Como tinham uma viagem agendada, em seguida, para o Paraguai, cumpriram o compromisso e somente depois é que estiveram em Goiânia e em Rio Verde, onde sobrevoaram uma área de 30 mil alqueires, entre aquele município e Montividiu, que estava reservada para o projeto.

Num segundo momento, a comitiva, integrada ainda por Guido Di Giovannantonio e mais 20 pessoas, que vieram no navio ‘Vapor Itália’, esteve na Capital goiana para participar da Conferência Internacional de Colonização e Imigração, em abril de 1949, quando essas duas questões foram colocadas em pauta para representantes dos dois países.

Cinco meses depois, em agosto, chegou um grupo de 60 chefes de famílias, em outro navio, trazendo maquinário, tratores e implementos, e ficaram na Hospedaria Ilha das Flores, em Niterói, uma espécie de quarentenário para avaliar o estado de saúde dos imigrantes. Depois, em aviões da FAB, viajaram para Goiânia e, logo após, Rio Verde.

Visto de entrada no país de Costantino Graziani, na segunda vinda dele, em abril de 1949

No dia 26 de dezembro de 1950, depois de uma viagem de 15 dias, inclusive passando o Natal no mar, foi a vez de um grupo de mulheres, outros chefes de famílias e filhos, incluindo bebês e crianças de colo, num total de 300 pessoas, chegarem ao Rio de Janeiro. A confusão que se formou exigiu a intervenção do Presidente da República para a liberação do avião que os traria para Goiás.

Um pequeno grupo foi direcionado para o que chamaram de “fazenda São Geraldo”.

A proposta era criar e manter uma colônia de pequenos agricultores nessa região de terras férteis, para a produção de trigo, hortaliças e frutas. Nem todos tinham experiência, alguns vieram em apoio, como mecânicos, e encontraram um terreno que não conheciam e nem estava preparado para essas culturas. A plantação de trigo, por exemplo, foi toda perdida, pois o cerrado exigia adubação especial e ela não foi feita. Como resultado, a perda de plantações, e o desânimo dos pequenos produtores rurais, que não sabiam como lidar com esse tipo de terra.

Os chefes de família que vieram em 1949 para a CITAg de Rio Verde, com implementos agrícolas que trouxeram da Itália

De acordo com Rodrigo Graziani, “o Governo não cumpriu o acordo, não fornecendo as casas para se instalarem com suas famílias”; e suspeita que houve falcatrua, “desvio de dinheiro para pagamento dos agricultores, que eram pobres e estavam descapitalizados, pois tinham vendido tudo para investir nessa mudança de país”. Lembra que, além de abandonados, ainda enfrentaram a resistência de parlamentares brasileiros, que os taxavam de fascistas.

Pouco mais de um ano depois perderam mais um apoio, pois a Cooperativa se desfez, quando cada um foi cuidar de sua vida, buscando alternativa. Guido Di Giovannantonio, por exemplo, arrendou uma chácara no Setor Palmito, em Goiânia, onde plantou hortaliças; depois foi ampliando as suas atividades. Outros se instalaram no Jardim Guanabara, em chácaras na saída para Anápolis, com idêntica finalidade. Alguns foram para São Paulo e ainda houve quem voltou para a Itália.

A história de Maria e Omar

Mineiro de Bambuí, Omar Magalhães Vargas veio jovem para Goiás, trabalhou uns tempos nas Casas Pernambucanas e depois foi servidor público estadual, sendo nomeado primeiro Coletor do distrito de São Geraldo. A Coletoria, criada em 1944, começou a funcionar no ano seguinte. Trabalhador, alegre, simpático e brincalhão, ele logo se entrosou no lugarejo. Na casa em que morava colocou no alto as iniciais de seu nome: O.M.V., como lembra o sobrinho Haroldo Vargas. Fez amizades, relacionou-se com as pessoas e teve um boteco, para venda de cerveja e pinga.

Maria Di Giovannantonio e Omar Magalhães Vargas

Com a redemocratização, em 1945, apoiou o líder político José Rodrigues Naves Júnior, da União Democrática Nacional (UDN), de oposição, em sua eleição para a Câmara Municipal de Goiânia, representando o distrito, e sempre estava por perto. Convivia com a família dele, era correligionário político, não admitindo que falassem mal do amigo e nem levava desaforos para casa.

Vez por outra surgiam confusões no povoado. Uma presença firme e respeitada, Maria Luíza Naves, mulher de Naves Júnior, era sempre chamada para apaziguar as desavenças que ocorriam, em especial no bar próximo de sua casa, na praça da Matriz. Certo dia, alguém chegou correndo em sua residência, chamando-a para resolver uma discussão que poderia resultar em morte. Ela atendeu o apelo e correu para ver o que podia ser feito, quando encontrou Omar discutindo asperamente, quase chegando às vias de fato, com dois adversários, do antigo Partido Social Democrático (PSD). Foi logo apartando, solicitando que parassem com o bate-boca; chamou o amigo num canto e pediu que fosse embora. Ele acatou, não sem antes provocar os seus algozes, passando no meio dos dois. DonaNenzinha, como era conhecida, ao ver aquela cena, imaginou o pior, já que estavam armados e poderia sair tiros a qualquer momento. Mas logo todos suspiraram, aliviados, e cada um tomou seu rumo.

José Osório Naves, filho de dona Nenzinha, guardou uma história desse período. “Lembro-me do dia em que ele apareceu em São Geraldo com um potrinho bravo. Reuniu a garotada na praça da Matriz e desafiou a molecada. Quem conseguisse permanecer mais de um minuto no lombo do cavalinho seria seu dono. Vários garotos montaram e caíram. Quando chegou minha vez, trêmulo de medo, montei no animal e ele, em vez de pular, saiu marchando. Como o cavalinho não pulou comigo, ele não cumpriu sua promessa e eu fiquei a pé, literalmente”, conta, rindo do episódio, que não esqueceu.

Solteirão, a vida de Omar mudou quando os italianos começaram a chegar em Goianira, em 1951.

Eram muito difíceis os tempos do pós-guerra na Itália. Guido Di Giovannantonio morava com a mulher Maria Cavuto e os filhos Maria, Natalína, Veneranda, Antônio, Franco, Alfredo e Concetta na Villa Grande, Província de Abruzzos, e plantava trigo, uva e milho na região de Ortona al Mare. Numa reunião da Cooperativa Italiana de Técnicos Agricultores eles discutiram alternativas. Na relação, o Brasil anunciava uma política de colonização agrícola, chamando agricultores experientes para ajudarem a ocupar os grandes espaços vazios existentes, oferecendo terras, financiamentos etc.

Diretor da Cooperativa, veio antes, gostou do que conheceu e mandou chamar seu pessoal, que foi para Nápolis, onde eles se juntaram a outras famílias que viriam para o Brasil. Depois, embarcaram no navio ‘Paolo Toscaneli’, numa viagem de 15 dias, e chegaram ao Rio de Janeiro logo depois do Natal de 1950. Ficaram oito dias de quarentena na Hospedaria Ilha das Flores, em São Gonçalo, e só então conseguiram vir em avião da FAB. “Não havia poltronas, só bancos nos dois lados”, lembra Veneranda Di Giovannantonio, então com 17 anos, ao relatar o desconforto da viagem.

Em Goiânia, foram levados para almoçar num restaurante bonito, próximo do Mercado Central.

A mudança foi colocada numa caminhão e as pessoas seguiram de ônibus para seus destinos: a maioria para Rio Verde, e pouco mais de 20 famílias para o distrito de Goianira, fazenda Mumbuca.

Ao chegar a São Geraldo, Guido optou por trabalhar numa propriedade rural próxima da estrada para a antiga Capital e do cemitério, onde ficou quase um ano. Como precisava ganhar dinheiro para sustentar sua família, alugou uma chácara, com uns quatro alqueires, servida por um córrego, no Setor Palmito, em Goiânia, para onde levou a metade de seus familiares. Ali, plantou uma variedade enorme de hortaliças, como batata-doce, cenoura, alface, vagem, cebola e beterraba, além de arroz e milho. A outra metade ficou no distrito.

Ana Domenica tinha uma admiração muito grande por sua primogênita Maria.

Quando criança, tinha o cuidado de ir ao jardim colher uma flor para lhe entregar, dizendo.

– Eis uma flor para a minha primeira flor.

Bonita, elegante, charmosa e muito trabalhadeira, costurando como poucos, Maria, com 22 anos em 1951, despertou a atenção dos rapazes do lugarejo. Encantado com a beleza da jovem italiana, Omar não perdeu tempo e jogou lhe todo o seu charme de galanteador, logo a conquistando.

Dois anos depois, Guido levou o restante da família para a chácara em Goiânia.

Omar também se despediu de Goianira. Logo depois os dois se casaram e se instalaram, primeiro em área próxima dos pais dela, e depois para uma casa que construiu na Vila Nova. Ele comprava e comercializava cereais na feira daquele setor e fazia corretagem de imóveis. Em 3 de outubro de 1958 candidatou-se a Vereador em Goiânia, pela UDN, obteve 50 votos, mas não foi eleito. Ela, que estudou até o quinto ano, continuou a costurar, conquistando logo uma grande freguesia; depois, passou a comprar roupas prontas em São Paulo, que revendia em Goiânia, com grande aceitação e, por fim, montou uma boutique em sua casa.

Maria recebia a todos com um sorriso acolhedor e amigo, e estava sempre disposta a ajudar.

Eles não tiveram filhos.

Ambos faleceram em Goiânia: Omar, aos 75 anos, em 1999; e Maria, aos 84 anos, em 2014.

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