Um pioneiro (que desbravou e preservou) na construção de Goianira e de Goiânia

Português que depois se naturalizou brasileiro, o alfaiate Manoel Pires da Costa chegou a Goiás em 1907, indo direto para Vila Boa.

Manoel Pires da Costa e Maria de Lemos Costa

Depois se fixou, em 1914, na região onde surgiria, alguns anos depois, o arraial de São Geraldo, mais tarde emancipado como Goianira.

Ele implantou a Fazenda Boca da Mata e foi, a partir daí, nesse início do século XX, um desbravador de matas preocupado em preservar; um pioneiro na agroindústria; e um empreendedor de visão: instalou serrarias e máquinas de beneficiar café e arroz quando ainda não havia, na região, maiores perspectivas de desenvolvimento.

Pragmático, fez reforma agrária antes dos discursos tão comuns ao longo do século, ao apoiar e incentivar assentamentos produtivos, com recursos financeiros e sistema de troca no pagamento dos empréstimos, forma como viabilizou a produção de vários pequenos agricultores.

Ajudou no início da construção de Goiânia, ao fornecer peões para a primeira roçada do local onde seriam erguidos os primeiros prédios, e foi o maior fornecedor de madeiras para as obras da nova Capital. Os cálculos mais otimistas indicam o fornecimento, no período de sete anos, de 15 mil m³ de madeira.

Cinco de suas filhas se casaram e se instalaram na fazenda, com os genros participando das atividades produtivas da empresa que foi surgindo, em várias áreas.

Eunice, que nasceu em Dois Córregos, São Paulo, no dia 2 de julho de 1902, continua morando na fazenda e ainda tem vivos, em sua memória, muitos dos momentos que passou ali, na construção daquele projeto de vida de seu pai.

A fazenda era auto-suficiente em praticamente tudo, produzindo hortaliças, frutas, arroz e café, tinha criação de porcos, galinhas e gado, além de fartura de peixes.

Fez a estrada ligando a Boca da Mata a Nova Veneza, num caminho para a exportação de produtos através da estrada de ferro, cuja estação mais próxima ficava em Leopoldo de Bulhões. Nessa estrada construiu a primeira ponte sobre o Rio Meia Ponte, de madeira, com uns 30 m².

Foi, acima de tudo, um pastor preocupado em difundir a mensagem evangélica.

Como sua trajetória começou

Galpão da serraria e o canal que conduzia água para mover a turbina

Natural de Avidagos, na Província de Traz-os-Montes, em Portugal, onde nasceu em 1873, filho de Antonio Pires da Costa e Tereza de Morais Vergueiro, Manoel Pires da Costa chegou ao Brasil aos 10 anos de idade, no dia 30 de janeiro de 1883, fixando residência na cidade de Niterói, Estado do Rio de Janeiro.

Ainda criança, começou a trabalhar com um seu tio, revelando, desde cedo, amor e denodo pelo trabalho, “motivo de grandes vitórias em toda a sua vida”, como registrou o pastor Antônio Cardoso Filho.

Aos 14 anos transferiu sua residência para a cidade do Rio de Janeiro, a então sede da Corte. No dia 1° de setembro de 1894 casou-se com Carolina da Costa Nunes, e a primeira filha, Maria da Costa Pires, nasceu no dia 26 de maio de 1895.

No dia 14 de julho desse ano, viajou para o Estado do Paraná, instalando-se em Curitiba, de onde, mais tarde, mandou buscar sua esposa, que havia ficado no Rio de Janeiro. Certo dia, caminhando pela Rua 1° de Março, adquiriu um exemplar da Bíblia, que passou a ser sua companheira de viagem.

No dia 27 de março de 1897 nasceu, naquela cidade, a segunda filha, Elvira Pires da Costa. A terceira filha, Tereza da Costa Pires, nasceu no dia 23 de agosto 1898. Em 1900 transferiu-se para Paranaguá, onde nasceu a quarta filha, Eliza Pires da Costa.

Em janeiro de 1902 mudou-se para a cidade de Dois Córregos, no Estado de São Paulo, filiando-se à Igreja Presbiteriana, que tinha como pastor o reverendo Francisco Vieira Bizarro e na qual foi eleito Presbítero; nessa cidade nasceu a quinta filha, Eunice Pires da Costa, no dia 2 de julho daquele ano.

Em 1903, mudou-se para Botucatu, também em São Paulo; em janeiro desse ano faleceu a sua primeira esposa. No dia 28 de fevereiro de 1906 casou-se com Maria Francisca de Lemos Costa, na cidade paulista de São Manoel do Paraizo, com quem teve os filhos José Pires da Costa, no dia 25 de dezembro daquele ano e que faleceu no mesmo dia; Alice Sara da Costa, no dia 29 de fevereiro de 1908, na cidade de Goiás, então Capital do Estado, onde também nasceram Olga Pires da Costa, em 8 de março de 1910, e Yolanda Pires da Costa, em 25 de julho de 1912.

O sobrenome Lemos de Maria Francisca tem ligação com a mulher do ex-presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, dona Sara.

Fui recebido a bala”, comentava, brincando, ao lembrar do tiroteio que assistiu quando, em 1907, atravessava de balsa o Rio Paranaíba, nas proximidades de Santa Rita do Paranaíba, hoje Itumbiara. Na época, houve uma revolta e a região pipocava de balas. “O povo estava se matando”, recordava, sem especificar, a propósito de que estava acontecendo aquela disputa. A viagem de Uberabinha, hoje Uberlândia, à antiga Capital goiana, durou 90 dias, e foi feita em cima de cangalha.

Primeiro foi para Vila Boa, onde se instalou e logo fez grande freguesia, pois costurava muito bem; importava tecidos de casimira da Inglaterra para fazer suas roupas e, entre os seus principais clientes, estavam os Caiado, que dominavam a política na Província.

Foi o primeiro crente a residir na cidade. Ali, ajudou na criação da Escola Aprendizes Artífices do Estado de Goiás, que mais tarde seria transformada na Escola Técnica Federal de Goiânia; no dia 30 de abril de 1912 foi nomeado mestre da Oficina de Alfaiataria dessa Escola, pelo Ministro de Estado dos Negócios da Agricultura, Indústria e Comércio, Pedro de Toledo, com base no Regulamento aprovado pelo Decreto n° 9.070, de 25 de outubro de 1911.

No dia 13 de dezembro de 1913 foi declarado “Cidadão brasileiro”, conforme título conferido pelo Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores, Herculano de Freitas, conforme o Decreto n° 6.948, de 14 de março de 1908. No dia 13 de dezembro de 1914 recebeu no Rio de Janeiro, do tabelião Luiz Antônio Pereira de Abreu, o título de “Cidadão Brasileiro”.

Quando decidiu deixar Vila Boa e se transferir para a fazenda, algumas autoridades locais procuraram dissuadi-lo da mudança. Entre elas, o coronel Perillo, mas ele já havia decidido.

Surgimento da Boca da Mata

Templo-igreja, toras no pátio da serraria e canteiro de obras do prédio, loja de comércio

Em 1908 conheceu um agrimensor do Estado, Osvaldo, que falou das terras na região do Rio do Peixe, na divisa de áreas, primeiro de Curralinho e depois de Inhumas e Caturaí com Campinas, Trindade e Goiânia, e mais tarde de Goianira. Foi-lhe sugerido que requisitasse as terras ao Estado, o que fez, requerendo 2.321,40 hectares, que pagou com bônus do Estado e com o resultado do trabalho que foi implantando. Sua mulher, Maria Francisca, que o acompanhou desde o início nessa empreitada, logo se entusiasmou com o local e não deixou que ele vendesse as terras, fixando ali em definitivo.

De tão densa vegetação, ele denominou a fazenda de “Boca da Mata”, onde entrou fazendo picadas, enfrentando uma série de dificuldades e perigos, como onças, cobras e “outros animais selvagens abundantes na época”, conforme registro do pastor Cardoso Filho. Ali começava o chamado Mato Grosso Goiano e em sua divisa ficava o cerrado, situando nessa linha divisória a fazenda de José Ferreira.

Na mata, haviam as mais diversas variedades de árvores, como Jacarandá, Jatobá, Amoreira, Aroeira, Bálsamo (madeira utilizada para a fabricação de carros de bois), Angico, Garapa, Ipê, Cascado, Tamboril, Peroba, Maria Preta (boa para fazer vigas), e, em menor escala, Gergelim, Folha de Bolo (uma madeira muito bonita), Axixá e Mandiocão, mais utilizada para fazer caixão, devido à sua rápida decomposição. Soube tirar a madeira sem depredar, procurando preservar, e em 40 anos que ali viveu derrubou menos árvores que as pessoas que vieram depois dele.

Fazenda Boca da Mata, São Geraldo

Represa que movia a serraria, máquina, moinho e o primeiro gerador de energia, de 5kW

A primeira casa, toda de madeira e um pouco acima do nível da terra, foi construída em 1915, tinha três cômodos grandes e ficava próximo ao Rio do Peixe. A segunda casa, 10 anos depois, já era de adobe, telhas e mais espaço interno, como três quartos, sala, cozinha e banheiros, e ocupava uma posição bem estratégica, no início da serra.

Com a mudança, a primeira casa foi transformada em centro de controle das atividades agrícolas, como para a venda de café. O fazendeiro Agenor Alves de Oliveira, que ali esteve em várias oportunidades, para vender café, comprar mercadorias e mesmo fazer carreto, lembra da forma carinhosa como Manoel Pires tratava a todos, sempre os chamando de filho e procurando envolvê-los nas atividades.

A procura por água potável foi uma constante, chegando até mesmo a cavar um túnel para buscá-la numa mina mais adiante; mas não conseguiu resolver esse problema. Ele instalou uma grande caixa d’água próximo à casa. Uma pinguela, de 8 m de extensão, sobre o rio, fazia a ligação da sede da fazenda, que ficava na região de Caturaí, em parte mais alta, ao complexo de atividades de indústria e comércio, em São Geraldo.

Trabalho pioneiro

Para a fazenda ele trouxe dois cunhados, Joaquim Ferreira Lemos e João Francisco das Brotas, ambos também paulistas de São Manoel do Paraíso, e os portugueses Benjamin Gomes, Manoel Joaquim Nogueira e Carlos José Nogueira, que eram da região de Póvoa do Varzim, além do brasileiro Manuel Rezende, sendo que os quatro acabaram se tornando seus genros.

Tudo ali começou da estaca zero e foi preciso fazer tudo, já que a região pouco oferecia, além de ser, nessa época, pouco habitada. Foram desbravando a mata, para implantar, de início, a primeira lavoura de café da região, em 1916, cujos primeiros frutos surgiram três anos depois; esse produto, limpo em monjolos, em pouco tempo já estava sendo exportado. As sacas eram enviadas, em comboios, até Vianópolis, onde ficava a estação da estrada de ferro mais próxima. A produção chegou a 10 mil sacas de café ao ano e, na época, se trabalhava durante uma semana para completar a carga de um vagão. A atividade pecuária foi igualmente implantada em 1916.

Logo, cada um de seus genros revelou a sua aptidão, assumindo a sua parte nas várias atividades que foram sendo implantadas: Benjamin, mecânico e grande construtor, responsabilizou-se pelas obras, desde as casas, barragens, usinas às estradas e pontes; Américo Brasileiro ficou com as lojas; Carlos, com a serraria e a comercialização do café; e Manoel Nogueira se ocupou dos caminhões.

Em 1928 montou o primeiro engenho, movido a água, a partir do qual instalou a primeira serraria, ainda pequena.

Toda a infra-estrutura foi sendo montada por eles. Em 1935 construiu uma represa, sempre muito limpa, no Rio do Peixe e, com a barragem, implantou uma primeira usina para a geração de energia elétrica, de forma a melhor atender os diversos empreendimentos que foram instalando.

Entre esses, a serraria, a maior da região e que mudou de tamanho e capacidade de acordo com a demanda, e no auge chegou a beneficiar 7 m³ de madeira por dia; e as máquinas de beneficiar café e arroz que, instaladas próximas, utilizavam as mesmas turbinas, além do moinho para moer milho e fazer quirera.

Ainda, ligado à represa, construiu um sistema de desvio de água que servia para lavar café, que era secado ali próximo. Com isso, a parte industrial ficou no futuro município de Goianira.

A segunda usina, igualmente naquele rio, construída em 1942, serviu para ampliar os empreendimentos e atender as necessidades da fazenda; ali também foi feito um desvio de água, pelo sistema de gravidade, para tocar a turbina, a partir de um canal de cimento e concreto: essa canaleta servia para lavar café, que vinha numa esteira/tela, passava pela peneira, enxugava, secava e ia direto para a máquina de beneficiar.

Foi a primeira agroindústria da região. O café obtido era do tipo mole, 4, para exportação. Ao lado, um espaço para secagem do café e, mais à frente, um imunizador de feijão, para não deixá-lo carunchar.

A primeira barragem no Rio do Peixe gerou curiosidades e dúvidas em alguns moradores das redondezas. Como os irmãos Joaquim Vicente Manso, João Apolinário Manso e Benedito Apolinário Manso, que residiam na região próxima a Caturaí.

Eles, anualmente, iam à fazenda, na época da enchente de São José, no dia 19 de março, verificar se a barragem romperia, sempre apostando na pior. No terceiro ano, já acreditando na firmeza das estruturas da represa, eles desistiram.

Preocupação social

Fazenda Boca da Mata, São Geraldo

Fazenda Boca da Mata, São Geraldo

Muito preocupado com a saúde de seus empregados, tratava os moradores da fazenda e da família com homeopatia, antes dos recursos médicos da cidade. Tinha um acordo com o médico Newton Wiedderhecker: como lhe emprestara dinheiro para adquirir a Casa de Saúde dr. Carneiro, recebeu em pagamento a prestação de serviços, assumindo o compromisso de, uma vez por semana, visitar a região para consultas e atendimento aos doentes. Às vezes, quando uma pessoa adoecia, era levada para a Capital. Inclusive, na carpintaria, o pessoal via cenas dantescas: quando alguém morria, o corpo tinha que esperar pela fabricação do caixão para o enterro.

Depois de dois anos de obras, no dia 25 de dezembro de 1942 concluiu, ao pé da serra, a sua terceira casa, um sobrado em estilo português, janelas e portas em madeira de lei, assoalho de tábua corrida. Eram dois pavimentos, num total de sete quartos, amplos, uma sala, uma cozinha, dois banheiros, uma varanda, uma pequena adega – ele gostava do vinho português – e uma caixa d’água, à esquerda.

O seu escritório ficava logo na entrada de sua residência, onde fazia suas anotações, numa bíblia ainda hoje conservada pela família, inclusive o registro das datas de seus casamentos e de nascimento e morte dos filhos; ele atendia as pessoas, pela janela, de onde via as atividades pecuárias.

A sua suíte ficava no pavimento superior e tinha um espaço reservado, onde lia a Bíblia, o jornal Folha de S. Paulo, que assinava, e a revista de humor Careta; ao lado, o banheiro. De lá, tinha uma visão privilegiada de parte da fazenda, como a represa ao lado – onde pescava em sua canoa a remo –, as águas do rio, os campos com capim jaraguá, as plantações de Bacuri, as atividades da serraria e do armazém e, de luneta, acompanhava o movimento da estrada que passava próximo. Ao lado da casa, as plantações de hortaliças, que abasteciam a fazenda. Participou da construção dessa casa o pedreiro Benedito Prata, irmão do ator Grande Otelo.

Ao lado do armazém – que chegou a ter um movimento diário, em 1942, em plena Segunda Grande Guerra, de 10 contos de réis, algo em torno de 10 milhões de reais hoje, abastecendo incluindo regiões próximas, como Campestre, que ficava uns 40 km adiante – havia um espaço para secar café.

Mais adiante, a casa de um dos genros, que tomava conta da loja e, próximas, as casas que abrigavam os empregados. O armazém tinha o térreo, onde ficavam as mercadorias; na parte superior, o depósito, e, na parte inferior, espaço para guardar os caminhões. Mais adiante, o galpão para hóspedes e viajantes; a carpintaria, e uma sala para incinerar a casca de café, depois utilizada para fazer sabão em barra.

O espaço para secar café, nos finais de tarde dos fins de semana, era utilizado para bater peteca.

Construindo estradas

Manoel Pires da Costa adquiriu o primeiro caminhão de toda a região, em 1929, e, com o crescimento e a diversificação da produção, teve que buscar alternativas para a sua comercialização. Como nunca conseguiu ajuda do Governo, e sempre estava disposto, ajudando, abriu, por conta própria, a primeira estrada.

Ela tinha uns 40 km de extensão, fazendo a ligação da Boca da Mata – passando pelo Lajeado e por São João, que depois seria emancipado como Brazabrantes – a Nova Veneza, de onde alcançava Nerópolis, que já estava ligada a Anápolis. A intenção era chegar até a estação ferroviária mais próxima, que ficava em Leopoldo de Bulhões, para onde levava café e arroz beneficiados. Era já o final dos anos 20.

Com a iniciativa, teve que construir a primeira ponte, sobre o Rio Meia Ponte, que tinha uns 30 m², toda de madeira. A estrada foi toda aberta na base do enxadão e da picareta, utilizando uns 30 peões, que ainda arrancavam os tocos e tapavam os buracos, para em seguida nivelar a terra com pranchões, feitos de madeira de lei pesada, com uma chapa, arrastados por quatro a seis bois.

À frente dos trabalhos, o português Benjamin Gomes, que entendia muito de mecânica e marcenaria. A obra durou uma vida e só ficou de lado, mais recentemente, com a construção de uma nova ponte, de concreto armado.

Sistemático, ele não gostou da forma como foi cobrado pelo fazendeiro José Moisés – que ficava na entrada do povoado de São Geraldo –, depois que um dos caminhões da Boca da Mata atropelou e matou um de seus porcos. Desgostoso do tratamento, ele resolveu construir uma nova estrada evitando essa entrada na vila, passando por fora, e ele mesmo deixou de visitar os amigos que ali moravam por um bom período.

Zé Moisés logo acabou se mudando do local, ao trocar sua fazenda pela do fazendeiro Joaquim Martins Borges (Quincas), na época um grande criador de gado e que tinha sua área na Boca da Mata. Quincas foi responsável pela introdução do gado Zebu em Goiás, mais especificamente em Goianira; entusiasmado pela pecuária, em 1935 esteve na Índia para conhecer um gado especial, que trouxe, mas foi proibido de entrar com o gado indiano em Goiás – isso o obrigou a alugar uma fazenda na divisa com Minas Gerais, onde criou esse gado e foi trazendo os bezerros de avião.

O desencanto de Quincas Borges com a fazenda se deu em 1936 porque, caçador, um dia saiu com seus cães atrás de uma onça e, nessa busca, o felino acabou matando seus cachorros.

Em 1948, no governo de Coimbra Bueno, foi feita uma nova estrada ligando o distrito de São Geraldo à Boca da Mata. Ainda hoje há uma preocupação em pavimentar esse trecho, para criar uma alternativa de ligação do Distrito Federal com o Mato Grosso sem passar por Goiânia, desafogando o tráfego de veículos.

Assentamentos

Sensível e solidário, Manoel Pires da Costa beneficiou muitas pessoas. Ao longo dos anos, sempre que chegavam novos grupos de famílias à região e o procuravam, ele vendia parte das terras, financiava para pagamento em produção e ainda ajudava os novos vizinhos em suas iniciativas. No grande armazém que montou na fazenda fornecia de tudo, desde insumos agrícolas, gêneros alimentícios, incluindo açúcar mascavo e cristal e sal, a tecidos, calçados, chapéus e ferragens.

O pagamento ficava para após a colheita. Esse local servia também como ponto de encontro dos mascates, que vinham oferecer suas mercadorias. Já nessa época dispunha de três caminhões, sendo dois Chevrolet, para 3.600 kg, e um Internacional KS 5. Nesse período os caminhões chegaram a funcionar como lotação, levando as pessoas até o povoado. Quando morreu, em 1954, deixou aos herdeiros 330 alqueires.

Ele fez a reforma agrária muito antes dos discursos demagógicos de hoje”, lembra seu neto Mário Pires Nogueira, que nasceu na fazenda e ainda mantém a sua parte da herança, que acabou por ampliar com a aquisição de outras glebas de primos. Hoje, tem 97 alqueires, criou com os irmãos a Boca da Mata Agropastoril, que controla as atividades comerciais da fazenda, e faz um trabalho não só de preservação como de recuperação dos imóveis que resistiram ao tempo. Em especial o grande galpão próximo à segunda usina, onde sua mãe, durante mais de 10 anos, lavava polvilho.

Entre as lembranças amargas desse período, inclui a que chamou de “invasão dos comunistas”, em 1947, em Serra Abaixo. Eram famílias que o avô trouxera de Minas Gerais; ali, acabaram se ligando a um médico de Goiânia, que não lembra o nome, que foi insuflando e promovendo agitações, o que o obrigou a pedir a reintegração da posse das terras, auxiliado pelo advogado Luiz Ângelo Milazzo. Em seguida, providenciou o transporte dessas pessoas para onde solicitaram.

Muitas famílias passaram pela fazenda, dedicando-se ao plantio de café, às lavouras de arroz e milho, e à criação de porcos e gado. A colônia era grande. “Meu avô era muito avançado para a época, estava uns 100 anos na frente”, afirma o neto. Exemplificando, referiu-se ao fato de que, nessa época, ele implantou o sistema de parceria, viabilizando a atividade de muitos fazendeiros, e o respectivo assentamento de muitas famílias.

Introduziu, inclusive, o sistema de mútua confiança, citando o caso do avô do José (Zé) Pacheco, que foi vereador em Inhumas e candidato a deputado estadual. “Havia um código, uma senha, para a entrega de produtos no armazém. Uma dessas convenções era o cabo do chicote: bastava o peão apresentá-lo para levar os produtos que pedia”, completou.

Ajudando na construção de Goiânia

Manoel Pires da Costa teve visão empresarial quando recebeu as primeiras notícias sobre a intenção do interventor federal Pedro Ludovico Teixeira de construir a nova Capital. Logo se estruturou para atender a demanda e sua serraria, a maior da época, que ocupava 20 peões, forneceu grande parte da madeira utilizada nas obras de Goiânia. Em média, saíam três carros de bois, carregados, levando as encomendas.

Como pagamento, recebeu vários lotes em Goiânia, como o da Avenida Goiás, próximo à Praça do Bandeirante, onde instalou um armazém para a venda de madeiras, cimento e arroz. Em 1933, quando houve uma grande convocação para a roçagem, dando início às obras, ele levou mais de 20 peões em seu caminhão. Guilherme Bernardino Borges, que nasceu em São Geraldo, em 1926, e passou sua infância e juventude na Boca da Mata lembra que a fazenda chegou a ter uns 40 carros de bois; ele mesmo ajudou seu pai, João Borges, a carrear os animais para levar mercadorias e produtos.

Foi amigo de Pedro Ludovico, com quem se relacionou, só rompendo com ele com a redemocratização, quando apoiou a oposição e a candidatura de Coimbra Bueno ao Governo do Estado. No povoado de São Geraldo era amigo do líder político José Rodrigues Naves Júnior, que acompanhava em suas decisões. “Vamos votar em quem o Zé Navinho indicar”, recomendava aos seus amigos e companheiros.

Ele fez apenas o curso primário, mas estava sempre bem informado e conhecia a legislação. Tinha à mão três livros – o Código Civil, que considerava leitura obrigatória, o Código Comercial e a Bíblia. Em 1938 construiu na fazenda a primeira escola rural da região, que sucedeu a Escola Dominical implantada por seu genro, Carlos José, onde desenvolveu um trabalho de alfabetização; e um templo evangélico, ainda hoje utilizado pela família e pelos moradores da região.

Na sede da fazenda, ao final da tarde, no início dos anos 40, muitas pessoas iam à sua casa para se informar, através de um grande aparelho de rádio Telefunken. Na época, o maior interesse era pelo andamento da guerra. Inclusive, alguns técnicos alemães que moravam na fazenda, e também italianos, estavam sempre lá, buscando notícias. Essa família de alemães se mudou antes do Brasil entrar na guerra, em 1944.

Logo após a revolução de 30, os fazendeiros eram “convocados” a participar, fornecendo gêneros alimentícios, animais, pessoal e mesmo veículos. Um de seus caminhões foi requisitado e o genro, Manoel Joaquim, que o conduzia, para não entregá-lo, preferiu ir junto com o caminhão, para levar as tropas.

Autossuficiência

De origem rural em Portugal, onde plantavam de tudo para o consumo, ele trouxe essa experiência para a Boca da Mata, que era uma fazenda completa, auto suficiente.

A criação de porcos, que ocupava uma área de cinco alqueires, toda cercada com muro de pedra, atendia as necessidades da fazenda e ao crescente mercado regional, em especial a Capital; nessa larga, tratava os porcos com milho, mamão, abóbora e mandioca, além de mangas e abacates, cujas plantações ficavam dentro desse cercado.

Jogava o milho, a canjica e o farelo próximos à sede, a partir do paiol que ainda existe no local, para que os porcos não ficassem apenas no mato ou sumissem, já que o espaço era grande. Na parte inferior da casa, no alto, eram enfardados os toucinhos de porco.

Também o gado tinha tratamento especial, a partir de um enorme canavial para a manutenção dos animais, em especial os dos carros de bois, pois na época da seca os pastos acabavam. A produção de leite era expressiva. O arroz e o milho vinham das parcerias.

Apenas para consumo, a fazenda tinha plantações de laranjas, ameixas, bananas (que davam muito bem na época) e uva, de que tanto gostava, além de hortaliças, colhendo alface, couve, tomate, agrião, pimentão, repolho etc.

Nas represas, no Rio do Peixe, a pesca era farta: piaus, piamparas, lambaris, traíras, bagres, peixes espada, cascudos, tubaranas e carazinhos.

Foi um pioneiro, também, na mecanização. Se até 1945 era conhecido como o período das “roças de toco”, quando faziam as derrubadas e sobravam os tocos das árvores, já no ano seguinte importou máquinas e tratores para formar as “lavouras de arado”. Inclusive, no final dos anos 40, chegou a plantar muito algodão na região.

Como era o único beneficiador da região, criou e fortaleceu o mercado, buscando dinheiro para empréstimo aos lavouristas, cobrando juros módicos, em torno de 1% ou às vezes sem juros, para receber em produtos.

A consolidação de Goiânia e o crescimento do próprio distrito de São Geraldo contribuíram para o declínio de algumas atividades da fazenda, como o grande empório, para a venda de praticamente tudo, abastecendo toda a região. Nos anos 60 essa mercearia foi fechada.

Ele foi, na verdade, um apaixonado pela região e nunca se furtava em elogiar a sua beleza, a fertilidade da terra, os produtos que colhia. Viajando pelo menos duas vezes ao ano, principalmente para São Paulo, em busca de informações e oportunidades de negócios, certo dia teve ocasião de defender a produção goiana. Num bonde, em discussão com um dos passageiros, que se gabava do grande volume de café que São Paulo estava exportando, Manoel Pires fez questão de deixar claro que o produto era vendido ali, mas saía das plantações de Goiás e Minas Gerais.

Dedicação ao Evangelho

Foi em Curitiba, em 1895, que Manoel Pires da Costa teve o primeiro contato com a religião. Um dia, caminhando pela Rua 1º de Março, adquiriu, por 1$500, de Francisco de Souza Jardim, uma Bíblia Sagrada.

Esse livro passou a ser seu companheiro de viagem e iria lhe revelar, mais tarde, “o caminho da verdade e abrir novos horizontes na vida em todos os seus aspectos”, conforme registro no livro histórico sobre a Igreja Cristã Evangélica de Boca da Mata, elaborado pelo pastor Antônio Cardoso Filho.

Em 1896 verifica-se a sua conversão ao pastorado do reverendo Landes e, em 1898, a sua profissão de fé na Igreja Presbiteriana Sinodal. Em 1900 transferiu-se com a família para Paranaguá, PR, sendo o primeiro crente a fixar residência naquela cidade.

Em janeiro de 1902 mudou-se para Dois Córregos, em São Paulo, filiando-se a Igreja Presbiteriana, que tinha como pastor o reverendo Francisco Vieira Bizarro e em cuja Igreja foi eleito Presbítero. Em 1903 assistiu, na Capital paulista, o Concílio da Igreja Presbiteriana, onde se verificou a cisão, nascendo a Igreja Presbiteriana Independente, à qual, “por uma questão de consciência”, ainda conforme Cardoso Filho, aderiu, ficando ao lado dessa Igreja quando se mudou para a cidade de Botucatu, em São Paulo, pastoreada pelo reverendo Francisco Lotufo.

Veio para Goiás em 1907, instalando-se na então Capital goiana, sendo ele o primeiro crente a residir na antiga Vila Boa. Após a sua chegada à cidade recebeu o reverendo Frederico Glass, que deu início ao trabalho evangélico, sendo mais tarde substituído pelo reverendo Archie Macintyre, que ali fixou residência.

A sua grande amizade com o reverendo Vicente Temudo Lessa, que considerava um irmão, indicava a natural filiação da Igreja Cristã Evangélica de Boca da Mata, que criara e mantinha, à Presbiteriana Independente, mas acabou não acontecendo, devido à morte desse Ministro. O fato abriu uma lacuna na família, mais tarde preenchida pelo reverendo Sinezio Pereira Lira.

A mudança de Manoel Pires da Costa e família para a Boca da Mata se deu em 1914, onde entrou fazendo picadas, enfrentando uma série de dificuldades e perigos, como onças, cobras e “outros animais selvagens abundantes na época”

Trabalho evangélico

O trabalho evangélico na fazenda começou em 1920. Primeiramente em caráter particular–permanente em sua residência, sendo assistido regularmente por muitos moradores. Em 1916 visitou a fazenda o reverendo Archie Macyntire, realizando o primeiro culto público. O trabalho se desenvolveu gradativamente, visitando-o, periodicamente, vários ministros, como os reverendos Joaquim Gomes Passarinho, Benedito Costa, Oliver Thonson e Archibald Tiple.

A conversão de Carlos José Nogueira foi importante no crescimento do trabalho evangélico na região. Português nascido em Balazar Póvoa do Varzim, no dia 29 de setembro de 1902, filho de Antonio José Nogueira e Ana Gomes Nogueira, chegou ao Brasil no dia 27 de novembro de 1929, desembarcando no Rio de Janeiro.

Dali, veio imediatamente para Goiás, fixando residência na Boca da Mata, onde já estava o seu irmão Manoel Joaquim Nogueira. No dia 8 de fevereiro de 1932 casou-se com Yolanda, filha de Manoel Pires da Costa e do casamento nasceram os filhos Maria José, no dia 8 de novembro de 1932, Mário Pires Nogueira, em 27 de maio de 1934, Osvaldo, em 18 de novembro de 1935 e Mirtes Lurdes, em 8 de maio de 1939.

Sua família em Portugal era católica e, desde que ganhou um exemplar do Novo Testamento de Pedro Pereira Salgado, fez sua opção. Foi batizado no dia 10 de novembro de 1933 pelo reverendo Joaquim Gomes Passarinho, a partir de quando se dedicou à ação evangelizadora, sendo querido por todos.

A ele se deve a criação da Escola Dominical da Boca da Mata, inicialmente instalada numa dependência da serraria e, depois, no interior do templo construído na fazenda; durante a sua gestão, a escola progrediu.

Tomou parte na inauguração do trabalho evangélico da Igreja Cristã Evangélica de Campinas, como representante legal da Congregação da Boca da Mata. Como auxiliar nos trabalhos seculares da fazenda, revelou grande capacidade, dedicação e honestidade. Morreu no dia 16 de dezembro de 1938, de câncer no estômago.

Mais tarde, Manoel Pires Nogueira construiu, com recursos próprios, o espaçoso templo, que ganhou mobiliário e um harmonio, um amplo salão para uma Escola diária e a Casa Pastoral, bem confortável, que foram doados à Igreja, com todas as benfeitorias, como ainda uma faixa de terras medindo 5.000 m².

Com o novo templo, a Igreja passou a receber visitantes ilustres, como os reverendos Vicente Temudo Lessa e Nicola Versari, da Igreja Presbiteriana Independente; Jorge Goulart e James Hudson, da Igreja Presbiteriana do Brasil; e o evangelista Custódio Pinto Rabelo. No dia 16 de maio de 1945, por ocasião da organização da então Congregação em Igreja, ato presidido pelo reverendo Sinézio Pereira Lira, Manoel Pires passou a exercer o cargo de Presbítero, que já vinha ocupando.

Em outubro de 1953 foi internado no Hospital Evangélico da cidade de Anápolis, recebendo alta médica no final desse mês, retornando à fazenda e às suas atividades. Seu estado de saúde se agravou no final de novembro, sofreu uma hemorragia, quando voltou ao hospital, submetendo-se a uma cirurgia, ficando em recuperação até fins de dezembro.

No dia 25 desse mês foi-lhe prestada uma homenagem pela Igreja, quando um grupo de 28 pessoas, empunhando cada uma um cartão medindo 25×20, contendo uma determinada letra, colocadas em ordem, apresentavam todo o seu nome e função eclesiástica; cada um recitou um versículo bíblico cuja letra inicial era a que representava.

Depois, houve recitação do “Acróstico”, pelo seu autor, pastor Antonio Cardoso Filho, referindo-se aos seus feitos no terreno material, como homem de negócios e tino administrativo, ocupando todo o seu nome; e no setor espiritual, com todas as letras do seu cargo.

Em 1954 sofreu parada cardíaca. Atendido pelo médico Domingos Viggiano, seu amigo, com quem sempre se tratava, não resistiu, falecendo em 5 de agosto daquele ano, aos 81 anos de idade.

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