A história do pecuarista que trouxe o Zebu para o Brasil, a luta pelo tombamento do sobrado, em modelo indiano, que construiu e as ações na Justiça para evitar a sua demolição
Há algum tempo começamos a buscar e a divulgar histórias sobre a família Naves, num trabalho que foi se ampliando: primeiro, com o boletim de notícias e a revista, que tive o prazer de produzir; e depois o blog criado pelo advogado Abilon Naves.
Nesse período, localizamos um material muito bem elaborado, do professor André Azevedo da Fonseca, jornalista formado pela Universidade de Uberaba (UniUbe), então pós-graduando em História do Brasil na PUC-MG.
A pesquisa que realizou resultou na produção de texto publicado em 2002 no “Revelação”, jornal laboratório no Curso de Comunicação Social da UniUbe, com o título “Cronologia da destruição – Como e porque Uberaba perdeu o Palacete de Antônio Pedro Naves, patrimônio cultural da cidade”.
Ficou muito interessante o material, que mostrou um momento especial na vida dessa cidade mineira, com a chegada do gado da Índia, que levou dinâmica ao seu desenvolvimento, e questões correlatas, inclusive sobre o nosso primo famoso.
Abilon conseguiu autorização do autor para publicá-lo, e nós o fizemos no boletim “Notícias de Naves”. Confiram.
INTRODUÇÃO
Como e porque Uberaba perdeu o Palacete de Antônio Pedro Naves, patrimônio cultural da cidade
André Azevedo da Fonseca
Resultado de três meses de pesquisa em documentos públicos, processos administrativos e judiciais, arquivos, cartórios e legislações, além de diversas entrevistas com os principais envolvidos, a reportagem procurou esboçar os bastidores de um caso de demolição que provocou muita discussões em Uberaba no final de 2002 – a derrubada do Palacete de Antônio Pedro Naves, imóvel tombado provisoriamente pelo Conselho de Patrimônio Histórico da cidade.
O texto procura apresentar, de forma didática, uma síntese do processo de tombamento e de impugnação, o mandado de segurança que acabou concedendo a licença para demolição, assim como o recurso de apelação ao Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, impetrado pelo Ministério Público, cujo objetivo é rever aquela sentença para instaurar uma ação civil pública de indenização contra o proprietário.
A reportagem procurou também contextualizar o caso com textos complementares, para que o leitor tenha uma visão geral sobre aspectos econômicos, sociais, culturais, governamentais e jurídicos que envolvem a questão da preservação da identidade de uma cidade.
DOSSIÊ
O triste fim de Antônio Pedro Naves
Edificação convidava à reflexão sobre importante período da história da cidade
Na sexta-feira 13 de dezembro de 2002, o Palacete Antônio Pedro Naves, uma das edificações mais significativas do patrimônio cultural da cidade, começou a ser demolido a pedido do empresário lotérico Idivaldo Odi Afonso, o proprietário. Primeiro o palacete foi destelhado. Depois, as paredes internas foram derrubadas. Finalmente, a fachada destruída. Na manhã de domingo, o segundo piso já estava praticamente em ruínas. Na segunda-feira, os comerciantes foram abrir as lojas e não acreditavam no que viam. Aquele casarão, destruído! O prédio localizava-se na esquina das ruas Manoel Borges e Major Eustáquio.
Para compreender o que Uberaba perdeu sob esses escombros, e para elucidar os caminhos que permitiram a destruição de um símbolo da memória coletiva, em favor de um negócio particular, é preciso, primeiro, dar alguns mergulhos na história da cidade; depois, meter-se a bisbilhotar registros em cartório de partilhas de heranças e negócios imobiliários; finalmente, entrincheirar-se entre uma furiosa batalha jurídica para desembaraçar a trama de argumentações que acabaram por justificar, perante a Justiça, a demolição.
Para conhecer um pouco de Antônio Pedro Naves, é necessário voltar os olhos para o fim do século XVIII, quando o fabuloso período de abundância do ouro de Minas Gerais entrou em decadência e os mineradores, alucinados por riquezas, passaram a buscar novos pontos de exploração. Foram descobertas algumas jazidas isoladas nas regiões do antigo Sertão da Farinha Podre, atual Triângulo Mineiro – o suficiente para chamar a atenção de muitos deles e disparar uma pequena corrida do ouro. Depois que esgotaram as jazidas do Desemboque, esses homens tiveram que procurar novas atividades para sobreviver. Foram organizadas, então, expedições de povoamento para buscar terras férteis no interior.
Nessas expedições o Sargento-mor Antônio Eustáquio da Silva e Oliveira, Comandante Regente dos Sertões da Farinha Podre (mais tarde conhecido por Major Eustáquio), encontrou terras mais férteis e decidiu construir a Chácara Boa Vista próxima ao Rio Uberaba. Dois quilômetros adiante, mandou fazer um retiro onde criou algumas cabeças de gado. Atraídas por Antônio Eustáquio, famílias passaram a instalar-se nos arredores de sua propriedade.
Esse povoamento foi o embrião do que viria a ser a praça Rui Barbosa. A casa de Major Eustáquio, o fundador de Uberaba, não existe mais. Localizava-se no terreno onde hoje está erguido o Chaves Palace Hotel. Durante o século XX, o imóvel foi ocupado pelo português Borges Sampaio (personagem importante da história da cidade), e mais tarde pela loja Notre Dame de Paris, muito popular até os anos 70. A casa de Major Eustáquio foi demolida no início da década de 80 para a construção do hotel.
Voltemos agora rumo ao século XIX. Uberaba foi um importante posto avançado de comércio – chamado de “boca do sertão” – por ser passagem obrigatória dos mercadores que atravessavam a estrada do Anhangüera e desbravavam sertão em caravanas de carros-de-boi para comercializar produtos de São Paulo (como o sal) e gado de Goiás e Mato Grosso. Depois de um período de baixo crescimento no século XIX, a chegada da Companhia de Estradas de Ferro e Navegação Mojiana, em 1889, incrementou a distribuição de mercadorias, aqueceu a economia da cidade e estimulou o surgimento de armazéns, bancos e indústrias.
Mais tarde, abalados por uma crise no comércio e pela abolição da escravatura, proprietários e políticos de Uberaba incentivaram a imigração. Para se ter uma idéia, até 1901, Uberaba recebeu 156 famílias de italianos. Depois vieram portugueses, espanhóis, árabes, sírios e armênios. Mas a superação da crise se deu quando a criação de gado Zebu – introduzida em 1875 – passou a atingir alta rentabilidade.
Mascate de Zebu
Logo chegaremos ao nosso personagem, Antônio Pedro Naves, o primeiro dono do palacete. Muitos uberabenses foram à Índia buscar o “boi de cupim”. Até 1921, cerca de 5 mil cabeças foram trazidas para a região. Os criadores do Triângulo Mineiro adaptaram o gado, de forma que o Zebu daqui ficou melhor que o da Índia – mais pesado, precoce e manso, características incomuns na raça tida como indomável. O Zebu teve dois períodos áureos na primeira metade do século XX: um de 1913 a 1921, e outro de 1935 a 1945, ambos impulsionados pelo alto consumo de carne brasileira na Europa, no período das Guerras Mundiais.
Uma das formas que os chamados “Barões do Zebu” encontravam para ostentar sua riqueza era mandando erguer palacetes suntuosos, projetados por arquitetos estrangeiros – especialmente italianos – que soltavam a imaginação para criar cenários de opulência e prosperidade. A arquitetura predominante na época era a chamada eclética – ou seja, reunia em si diversos estilos e escolas estéticas. Essa era a moda nos grandes centros da época, e uma forma de parecer cosmopolita era aderindo ao que de melhor se fazia na arquitetura das metrópoles.
Apesar da ostentação e glória dos barões, outros personagens tiveram papel fundamental na história do Zebu. Foram os mascates – comerciantes aventureiros que desafiavam o sertão, enfrentando sol, chuva e mormaço, cobras, mosquitos e doenças, montando lombo de burro ou cavalo, arrastando cangas de bois para apresentar e vender a raça ainda desconhecida pela maioria dos pecuaristas brasileiros. Chamados de os primeiros “marketeiros” do Zebu, esses homens enfrentaram muita resistência devido à intensa campanha difamatória que a raça sofreu nesta época. – Zebu não é raça, é bicho!, dizia o político Assis Brasil.
Segundo informações no processo de tombamento, Antônio Pedro Naves foi um desses mascates. De acordo com o registro no Cemitério Municipal, Naves nasceu em 9 de fevereiro de 1871 – época do Brasil Império. Aos 18 anos, Naves vivenciou o período da Proclamação da República, em 1889. Há dúvidas em relação à sua origem. O livro do cemitério informa que ele é uberabense. A certidão de óbito, disponível no Arquivo Público, registra que ele é de Sacramento. No entanto, fontes da família afirmam que ele nasceu em Iraí de Minas, mas veio morar em Uberaba porque procurava um lugar melhor para educar os filhos.
Enfrentando todas as dificuldades imagináveis na condução do gado pelo Triângulo Mineiro e Mato Grosso, conseguiu acumular certo dinheiro e comprou umas terrinhas, incluindo a fazenda Marimbondo. Tornou-se então criador e comerciante de gado, e foi sócio fundador e contribuinte do Herd Book Zebu – a primeira associação criada para exportação de animais, em 1918, e que mais tarde daria origem à Associação Brasileira dos Criadores de Zebu (ABCZ).
Na primeira crise do Zebu, Naves teve que penhorar boa parte de suas propriedades para saldar dívidas. Mas Naves enriqueceu de verdade no período de grande exportação de carne para suprir o mercado europeu durante a 1ª Guerra Mundial. Seu palacete foi construído nessa época.
Não consta que Naves tenha viajado pessoalmente à Índia. Segundo uma nota publicada no jornal Lavoura & Comércio, no domingo de 3 de agosto de 1919, o negociante Luiz de Oliveira Ferreira seguira naquele dia para o Rio de Janeiro, com destino à Índia, para adquirir “uma grande leva de reprodutores indianos para si e para os srs. Dr. José de Oliveira Ferreira e Major Antônio Pedro Naves”. No entanto, era possível imaginar a admiração de nosso personagem principal por aquele país, sobretudo devido à arquitetura de seu palacete – com nítidas influências orientais, especialmente do Taj Mahal –, além do nome indiano de uma de suas filhas, Rasma.
Arquitetos sabem que, em um projeto, o profissional “estuda” o seu cliente, ou seja, conhece a visão de mundo e os anseios do futuro proprietário para expressá-los na arquitetura. Aquele palacete, portanto, edificara o universo mental de Naves, um contemporâneo de um dos períodos áureos da história de Uberaba.
O palacete de esquina correspondia a uma área de aproximadamente 900m2 e possuía dois pavimentos divididos em 20 cômodos – treze no térreo e sete no porão. A cobertura era de telhas francesas, e as fachadas divididas em duas partes simétricas, com uma escadaria de acesso central ao térreo. Essa escadaria fazia conjunto com uma pequena galeria protegida por uma balaustrada e uma cobertura estilizada, onde elevava-se um mirante.
Nosso personagem não frequentava muito as páginas dos jornais da época. A reportagem consultou os arquivos do jornal Lavoura & Comércio e só foram encontradas duas ocorrências: a nota sobre a viagem de José de Oliveira à Índia e a notícia do falecimento de Naves em 1941, sem foto, onde são louvadas as suas virtudes de “conceituado pro-prietário”, “apreciáveis dotes de caráter”, “chefe de família exemplar”, “cidadão digno e prestimoso”, etc. A pedido da reportagem, a estudante de História da Uniube, Cristiane Ferreira, pesquisou nos periódicos do Arquivo Público Municipal, e nada de Naves. Foram encontrados sete processos judiciais do comerciante, basicamente relacionadas à dívidas de inadimplentes.
Não é difícil imaginar Antônio Pedro Naves, o próspero, numa tarde de sábado, vitorioso no mirante de seu recém construído palacete, relaxando o corpo na cadeira de balanço, lendo as últimas da Gazeta de Uberaba, endereçando cuspidelas na escarradeira de porcelana, enquanto recebia demonstrações de carinho e consideração de seus herdeiros: a esposa, Maria Rosa, e os cinco descendentes, Rasma, Stellita, Dagoberto, Alaor e João.
Simbologia histórica
O projeto arquitetônico do palacete foi concebido por Francesco Palmério, italiano de Torre de Passeri. Palmério veio para Uberaba com um grupo de engenheiros, contratados na Itália, para trabalhar na Estrada de Ferro Cia Mojiana. Francesco era também topógrafo e teve muito serviço quando, em consequência do artigo da Constituição Republicana de 1891, os herdeiros de sesmarias tiveram que realizar partilhas entre os condôminos para regularizar a documentação.
Francesco naturalizou-se brasileiro e passou a assinar Francisco. Teve nove filhos, entre eles Mário Palmério, criador das faculdades que deram origem à Universidade de Uberaba. De seus projetos arquitetônicos, restavam apenas dois: o palacete de Antônio Pedro Naves e o palacete de Arthur Castro e Cunha, localizado na praça Rui Barbosa, ao lado da Câmara Municipal. Hoje, em 2003, só resta este último.
O executor do projeto de Palmério foi o construtor Miguel Laterza, responsável também pela edificação da Igreja São Domingos, pela antiga penitenciária (hoje Faculdade de Medicina) e várias casas na rua Segismundo Mendes.
Por carregar toda esta simbologia histórica e por ser um exemplo precioso de uma arquitetura projetada e construída por engenheiros das melhores escolas italianas, o palacete chamou a atenção do Instituto Estadual de Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG) e foi registrado no Inventário de Proteção do Acervo Cultural de Minas Gerais (Ipac-MG) em 1987. O Ipac é um relatório de pesquisa cuja finalidade é rastrear, identificar e conhecer o acervo de todos os 853 municípios do Estado. O objetivo é formar um banco de informações para servir de instrumento à definição de políticas públicas de proteção ao patrimônio. No fichamento assinado pela arquiteta Denise Thomaz Teixeira, está escrito que “a edificação encontra-se em satisfatório estado de conservação. Apresenta descaracterização no porão, acesso principal, e outras de caráter reversível como o uso de anúncios publicitários nas fachadas”. Era evidente que o palacete deveria ser restaurado e protegido. Era um dos mais importantes símbolos da formação histórica da cidade.
PATRIMÔNIO DE UBERABA
Importância histórica justificava preservação
Codemphau havia sugerido tombamento em fevereiro de 2000
O Conselho Deliberativo Municipal de Patrimônio Histórico e Artístico de Uberaba (Codemphau) é o órgão institucional encarregado de executar o tombamento dos bens culturais de interesse público. É também atribuição do conselho a realização de laudos, pareceres técnicos, pesquisas históricas e assessoria em projetos urbanísticos e planos de obras em áreas de preservação. Além disso, é o órgão responsável pela notificação dos proprietários, estabelecimento de medidas definitivas de proteção, fiscalização do cumprimento das leis e decisões sobre a aplicação de recursos. Sempre que as ações de qualquer secretaria municipal envolverem o patrimônio cultural da cidade, o Codemphau deve ser consultado e tem autonomia para impedir modificações que comprometam a preservação.
Os conselheiros, nomeados pelo prefeito, são pessoas de destaque na sociedade e não recebem remuneração. Normalmente são historiadores, arquitetos, artistas e representantes institucionais como vereadores e funcionários de secretarias estratégicas. O conselho municipal foi instituído em 1984, com função apenas consultiva. Em 1997 passou a ser deliberativo — isso significaria mais poder de decisão e execução. O presidente do Codemphau era o então presidente da Fundação Cultural, José Thomaz da Silva Sobrinho.
Em uma reunião no dia 9 de fevereiro de 2000, o Codemphau determinou que o palacete de Antônio Pedro Naves deveria ser tombado. De acordo com a planta dos perímetros de entorno de três bens protegidos (Paço Municipal Major Eustáquio, Palacete São Luís e residência na Praça Rui Barbosa), estava claro que o palacete já estava protegido por localizar-se entre dois deles. Além disso, como citado anteriormente, a casa já fora inventariada pelo Iepha-MG e indicada para tombamento, ainda em 1987.
Nessa reunião, o advogado Alaor Ribeiro, um dos conselheiros, chegou a redigir um parecer recomendando o tombamento, mas as coisas não passaram disso. Em 2000 houve apenas três reuniões do conselho, conforme os registros em ata disponíveis na Fundação Cultural. A historiadora Sonia Fontoura foi afastada do arquivo e, em 2001, o Codemphau simplesmente se esvaziou e deixou de exercer as atividades.
Em março de 2002 o conselho foi reestabelecido, deixou de ser vinculado ao Arquivo Público, criou equipe técnica própria e passou a ser ligado à Fundação Cultural. Sonia Fontoura — agora assessora do conselho — e o historiador Augusto Rischiteli trabalhavam no processo de tombamento do palacete desde 1999, ainda no Arquivo Público. Esse processo constitui-se em um detalhado dossiê que registra a contextualização histórica da cidade e do bem cultural, faz a descrição e análise do imóvel, delimita seu perímetro de entorno e reúne documentação cartográfica e fotográfica para instituir o tombamento definitivo. Grande parte das informações históricas do começo desta reportagem tiveram essa pesquisa como fonte.
Em 11 de abril de 2002, o proprietário Idivaldo Odi Afonso foi notificado e Sonia Fontoura assinou o parecer estabelecendo o início do processo de tombamento. Foi a faísca que detonaria uma guerra furiosa, combatida em uma série de batalhas exaustivas, travadas em duas frentes simultâneas, que acabaria por soterrar o legado de Antônio Pedro Naves, em um ainda distante 13 de dezembro.
Nesse ponto da história, no entanto, surge uma pergunta intrigante, que uma alma curiosa não poderia deixar de formular: como o imóvel da família — que supostamente deveria prezar pela memória do patriarca — veio parar nas mãos de Idivaldo, um empresário que nunca escondeu sua intenção em destruí-lo? É isso que examinaremos a seguir.
PATRIMÔNIO DE UBERABA
Antônio Pedro Naves é nome de rua
Mascate ilustre já recebeu homenagem clássica do poder público
Nosso malogrado personagem principal já recebeu aquela clássica homenagem póstuma do poder público, que um dia resolveu batizar uma rua com seu ilustre nome. A rua Antônio Pedro Naves, no centro da cidade, fica paralela com as ruas Jayme Bilharinho e José Furtado Nunes, e liga as ruas Governador Valadares e Afonso Rato, cruzando a avenida Leopoldino de Oliveira.Em 1996, o então vereador Edivaldo Moreira dos Santos propôs uma lei que instituiria o “Calçadão do Camelô” na rua Antônio Pedro Naves. O “camelódromo” interromperia o tráfego no trecho que liga a Governador Valadares com a Leopoldino de Oliveira. Curiosamente, instalar pontos de vendedores ambulantes na rua batizada com o nome de um mascate seria até apropriado — visto de uma perspectiva histórica. Mas a lei foi vetada.
FRAGMENTOS
Uma herança embrulhada
Histórico da propriedade é um labirinto de divisões do espólio de Naves
Uma consulta minuciosa em cartórios de registros de imóveis mostra que o histórico da propriedade dessa casa é um complicado labirinto de divisões do espólio de Antônio Pedro Naves entre duas gerações de herdeiros, incluindo maridos e esposas casados em regime de partilha de bens, envolvendo mais de 30 pessoas de pelo menos 17 núcleos familiares. Mas antes de tudo, um recado de alívio prévio: o leitor não precisa se preocupar em decorar nomes nesta confusão de gente envolvida no emaranhado da partilha que será mostrado a seguir. Pode continuar a leitura no ritmo normal, sem se assustar com a frenética sucessão de herda-compra-e-venda da ventania de escrituras a seguir. O objetivo da exposição é acompanhar a desconstrução e reconstrução da propriedade, até o dono final.
A história começa assim: O velho Naves morreu em sua residência aos 70 anos, de câncer no pulmão, no dia 25 de outubro de 1941, às 8h da manhã. A esposa, Maria Rosa, herdou a casa gravada com a cláusula de inalienabilidade vitalícia — isso significa que o imóvel não poderia ser vendido, nem pelos filhos, enquanto a viúva estivesse viva. A três dias do aniversário de dez anos de morte de Naves, no dia 22 de outubro de 1951, morre Maria Rosa, pouco antes de completar 72 anos. O palacete foi então dividido entre cinco herdeiros e seus cônjuges. Rasma, casada com Azor Ferreira Santos; Stellita, casada com o fazendeiro José Ribeiro Junqueira; Alaor, que mais tarde se casaria com Nina Cardoso; e Dagoberto, que se casaria com Aracy de Oliveira, herdaram 20% cada um. João Naves fez diferente: preferiu transferir a herança diretamente para sua esposa, a ex-miss Uberaba, Leonor Dimas Naves; e para a filha, Maria Norma Naves, que herdaram, cada uma, 10% do imóvel.
Rasma faleceu na cidade de São Caetano do Sul (SP), em abril de 1969, aos 69 anos. Como não deixara testamento, os 20% do imóvel que era de seu direito foi rateado entre sete herdeiros, de acordo com um processo de partilha que só foi resolvido em julho de 1976. Ficou assim: cinco deles herdaram o equivalente a 3,3% do imóvel. Os beneficiados foram Maria da Conceição Naves Santos; Maria de Lourdes Naves Ventura; José Eduardo Naves Ferreira; Antônio Jesuino Naves Ferreira (estes três últimos moradores em São Paulo); e Maria Rosa Naves Ferreira, que morava em Araxá. Dois outros acabaram por herdar, cada um, o equivalente a 1,6% do palacete: Ana Maria Moraes Ferreira e Arnaldo de Moraes Ferreira, ambos moradores em São Paulo.
Eis que Dagoberto Naves falece em julho de 1978. A viúva, Aracy de Oliveira Naves, herda os 20% da propriedade. Aracy também veio a falecer e, em março de 1994, Leonor, cunhada de Dagoberto, realiza uma negociação e acaba por herdar seus 20%. Leonor passou, então, a ser dona de 30%, pois acumulara a herança de Dagoberto com os 10% que ela já havia herdado da sogra, Maria Rosa Naves.
A divisão da propriedade vai se complicando mais ainda. Alaor Naves e sua esposa, falecem. No inventário, realizado em agosto de 1991, os 20% da propriedade que lhes cabiam foi dividida entre dois herdeiros: Elizabeth Naves Doti, casada com Attílio Doti; e Antônio José Cardoso Naves, casado com Roseli Fornazier Naves — todos moradores em Belo Horizonte.
Stellita Naves Junqueira, também da primeira leva de herdeiros, faleceu em julho de 1967, e seu marido, José Ribeiro, morreu um pouco depois, em agosto. Os beneficiados pelo espólio foram João Francisco Naves Junqueira, casado com Regina Maura Costa Junqueira; e Luiz Antônio Naves Junqueira, casado com Martha Villela Martins Junqueira, todos então moradores em São Paulo. Cada um ficou com 10%.
Maria Rosa Naves Ferreira casou-se com Olavo Martins Maneira e seu nome de casada ficou Maria Rosa Santos Maneira. Ana Maria Moraes Ferreira casou-se em 1973 com Jácomo Andreucci Filho e passou a assinar Ana Maria Ferreira Andreucci. Eles se separaram em 1986, mas ela continuou a usar o nome de casada. Por fim, Arnaldo de Moraes Ferreira casara-se com Ethel Neves Ferreira. É importante lembrar que, ao se casarem, a comunhão de bens faz com que os cônjuges tenham também direto à frações da propriedade, complicando ainda mais a questão. Fica evidente, portanto, o motivo pelo qual o palacete de Antônio Pedro Naves, patrimônio cultural de Uberaba, ficou por tanto tempo esquecido, desprezado, encoberto de placas, sujeira e musgo. Havia tantos donos, e não havia nenhum ao mesmo tempo.
O homem de negócios
E então entra na jogada Idivaldo Odi Afonso, o empresário lotérico que tinha interesse em comprar o palacete por causa do valor imobiliário do terreno. Que os leitores perdoem a efusão de datas e centavos, mas eles são importantes para elucidar a cronologia da destruição. O calendário estava contra o palacete. A cada dia que passava, era um baque a mais para a demolição.
Em 9 de março de 2000, Idivaldo deu o primeiro peteleco: adquiriu, de Maria Rosa Santos Maneira, 3,3% do palacete. Pagou R$4.914. Em 17 de abril, com uma só cajadada, fechou negócio com 11 dos herdeiros (incluindo maridos e esposas) e comprou um total de 53,3% do palacete. A coisa se deu assim: Ele adquiriu 20% de Leonor Dimas Naves, por R$40 mil. Levou os 10% de Maria Norma Naves Marques e marido por R$20 mil. Comprou a parte pertencente a Ana Maria Ferreira Andreucci, o ex-marido Arnaldo de Moraes Ferreira e sua nova esposa, que em conjunto detinham 3,33%, por R$6,666,60. Adquiriu a parte reunida de João Francisco Naves e esposa com Luiz Antônio Naves Junqueira e esposa, que detinham juntos 20% do imóvel, por R$40 mil.
Em 24 de abril, Idivaldo comprou 10% de Antonio José Cardoso Naves e esposa, por R$20 mil. Em 14 de junho, através de compra e venda de direitos hereditários, obteve os 3,3% de Antonio Jesuíno Naves Ferreira, falecido em 1995, por R$4.374,74. Da mesma forma, obteve o espólio de José Eduardo Naves Ferreira e Maria de Lourdes Andreucci Naves, que correspondia a 3,3% do imóvel, ao preço de R$4.374,74.
Em 18 de setembro, comprou 10% de Elizabeth Naves Doti, por R$15 mil. Através da compra dos direitos hereditários de Maria da Conceição Naves Santos e seu marido, obteve, em 19 de dezembro, mais 3,3%, ao custo de R$6.666,65. Em 26 de abril de 2001, comprou de Leonor Dimas Naves, mais 10% do imóvel, ao custo de R$20 mil. Isso lhe conferia 96,7% da propriedade. (Mais tarde descobriremos onde estavam os 3,3% que ainda faltavam). Até então, desconsiderando as correções monetárias, gastara quase R$182 mil.
Para iniciar o processo de tombamento, a lei determina que os proprietários sejam notificados da decisão do conselho. No dia 11 de abril de 2002 Idivaldo fora notificado. Conforme a lei, o proprietário teria o direito de recorrer na Justiça, caso não desejasse que seu imóvel fosse tombado. Foi o que fez. Já no dia 16 seus advogados solicitaram à Fundação Cultural uma cópia dos documentos para “fins de apresentar sua defesa plena”. E no processo de impugnação, assinado no dia 25, deixam explícito que Idivaldo “não tem o mínimo interesse de explorar o imóvel nas condições em que o mesmo encontra-se, tendo em vista a insignificante renda que o mesmo porventura poderá proporcionar-lhe”.
Logo veremos com detalhes os argumentos apresentados neste processo. E fica aqui mais um recado: em algum momento dessa batalha, talvez o leitor comece a se sentir exausto perante o furioso desenrolar de informações. No entanto, os mais curiosos podem ficar certos de que se trata de uma verdadeira aventura no universo da retórica e da persuasão, pois — isso é necessário admitir — trata-se de um processo exemplar, que atuou nos trâmites legais (o prédio só foi demolido depois da sentença da juíza), explorou as brechas e alternativas possíveis e foi hábil ao interpretar os laudos para impor a versão que o proprietário desejava. Para as pessoas particularmente interessadas em patrimônio cultural, essa anatomia será de grande valor e deve ser objeto de estudo, pois será possível compreender minuciosamente a mentalidade, os argumentos e os instrumentos jurídicos que podem ser usados na guerra da destruição contra a preservação de um bem histórico.
MEMÓRIA
Netos falam do avô
Para João Francisco Naves Junqueira e Naná Rodrigues da Cunha, “vô Tonico” não foi mascate, mas comerciante de gado
O médico João Francisco Naves Junqueira, e a estilista Naná Naves Rodrigues da Cunha, netos de Antônio Pedro Naves, concederam uma entrevista ao repórter na tarde de 14 de abril, no atelier de Naná, localizado no grande Hotel de Uberaba. Segundo eles, o “vô Tonico” veio de Iraí de Minas para Uberaba porque preocupava-se em encontrar um lugar melhor para educar os filhos. Rasma e Stellita acabaram por estudar no Sion — colégio das Freiras Dominicanas — em Campanha, no sul de Minas. Dagoberto e Alaor estudaram em colégio Jesuíta, em Friburgo.
A reportagem apurou que, assim como Uberaba, Iraí de Minas também originou-se com as expedições à procura de jazidas minerais. De acordo com dados da Secretaria de Cultura de Minas Gerais, a descoberta do diamante Estrela do Sul, em 1852, provocou a chegada de muitos garimpeiros, dando origem ao povoado de Espírito Santo do Cemitério. Em 1909 o lugarejo passou a se chamar Iraí, palavra de origem tupi que significa “rio de mel”. Em 1943 passou a chamar-se Bagagem, em referência ao rio em cujas margens foi instalado o primeiro povoado. O nome atual só foi definido em 1953. Iraí de Minas foi distrito de Monte Carmelo e, em dezembro de 1962, foi elevado à categoria de município.
De acordo com os netos, o velho Naves possuía duas fazendas: Baguaçu e Santa Helena. Eles não se lembram da fazenda Marimbondo, citada na pesquisa do dossiê de tombamento. Eles também afirmam que Naves não foi mascate, mas comerciante. “O vovô, quando veio pra cá, comprou a fazenda e se dedicou ao comércio. Ele comprava, engordava, criava, — era um comerciante de gado. Ele não era mascate, ele não saía pra vender. Tinha fazenda, tinha seu gado próprio e comercializava”, afirmou João Francisco Naves.
Naná confirmou a história. “Ele tinha uma vida muito confortável, muito acomodada, tinha carro. Ele ficava mais em casa, recebendo os amigos, porque Uberaba era pequena naquela época, então todo mundo ia pra lá. As meninas faziam saraus, essas coisas”.
No entanto, o presidente do conselho curador da Fundação Museu do Zebu, Márcio Cruvinel Borges, confirma os dados da pesquisa do tombamento. Márcio mostrou que Antônio Pedro Naves inclusive está listado no livro Cem anos de mascates, editado pelo Museu do Zebu. É provável que Naves tenha começado a vida como mascate, depois comprou terras e tornou-se criador.
Em relação à casa, Naná brinca que gostaria de ter ganho na loto para poder comprá-la. Ela disse que, quando Borsoi e a esposa Janete Costa — famosos arquitetos brasileiros — estiveram em Uberaba, Janete chegou a afirmar que, no Brasil, em termos de estilo, “tinha visto poucas casas tão perfeitas e com um material tão maravilhoso como o palacete”. Naná lamentou a demolição, dizendo que aquela casa era muito importante. “Mesmo para Uberaba naquela época, ela fazia um sucesso muito grande.” Segundo ela, todo o material era importado, especialmente da França e Portugal. “As portas eram todas de pinho de riga, todas!”.
Nenhum dos dois encontrou fotos do avô nos arquivos da família. “Quando vovô morreu eu tinha uns 10 anos”, explica João Naves.
CONSELHO X PROPRIETÁRIO
Agora é guerra!
Batalha de argumentos, laudos e versões incendeiam o furioso e exaustivo processo administrativo
Exércitos postos, e a guerra começa pra valer. O Codemphau e a Procuradoria Geral do Município reuniram os dossiês, documentos e laudos técnicos para defender o tombamento no processo administrativo. O laudo da arquiteta Izabela de Souza Alves Torres, realizado em março de 2002, considerava bom o estado de conservação da edificação. A estrutura do telhado (madeira, lage e perfil metálico) foi considerada regular, e foi notado um provável “ataque de cupins no madeiramento”, além de telhas quebradas. Ainda segundo o laudo, o estado das alvenarias, revestimento e vedações era bom, com exceção da pintura desgastada, de trincas no reboco e de portas e janelas em estado ruim, “necessitando intervenção”. Foi notada a ausência de instalação de prevenção de combate a incêndio e outros sistemas de segurança (um dos critérios do formulário do laudo). No entanto, a avaliação acabou ficando incompleta porque o proprietário não permitiu a entrada para vistoria interna.
Por sua vez, Idivaldo contratou os serviços dos advogados Néliton Furtado dos Santos, José Marques de Queiroz Júnior e Ricardo Julien Lóes, e movia o processo administrativo para impugnar o tombamento e defender a demolição.
Já nas preliminares, os advogados começam por alegar algumas pendências processuais, tais como ausência da ata da reunião que decidiu pelo tombamento, existência de um documento assinado por apenas uma das conselheiras, e outras questões formais — tais como ausência de numeração e rubricas em todas as páginas do processo. Por causa disso, pediam o cancelamento do tombamento provisório.
Foi apontado outro problema. A lei determina que, para se efetuar o tombamento, todos os proprietários devem ser notificados. Até aí, nenhuma novidade, pois Idivaldo já recebera a notificação em abril. No entanto, eis que surge uma co-proprietária: Maria de Lourdes Naves Ventura — aquela que ainda detinha os 3,33% do espólio de Rasma Naves. Não se sabia o endereço de Maria de Lourdes. Sabia-se apenas que morava em São Paulo. E como ela não havia sido notificada, o tombamento provisório não tinha valor.
Isso serviu como uma dica para o Codemphau. Em uma Folha de Informações e Despachos (FID) datada em 7 de maio de 2002, dirigida ao procurador geral do município, Paulo Eduardo Salge, os conselheiros pediram para que a Procuradoria acertasse as formalidades, como autuar e registrar o processo, assim como numerar as folhas em sequência. No final de abril, Sonia Fontoura chegou a redigir um ofício ao então diretor do Iepha-MG, Flávio Lemos Cassolati, solicitando assessoria para a defesa contra a impugnação do tombamento. No entanto, o ofício não foi enviado porque o conselho e seu presidente, José Thomaz, recusaram a idéia.
O segundo passo era notificar a co-proprietária. O procedimento legal, quando a pessoa mora em local desconhecido, é tornar pública a notificação, divulgando-a pela imprensa. Em 26 de julho, a notificação à Maria de Lourdes Naves Ventura foi publicada no Porta-Voz, o jornal oficial da Prefeitura. Assim, o palacete Antônio Pedro Naves estava provisoriamente tombado.
Laudo técnico
Para avaliar as condições da edificação, Idivaldo encomendou um laudo técnico do Escritório de Avaliações e Perícias de Engenharia (Esape), assinado em 20 de abril pelo engenheiro José Delfino Sobrinho. O laudo descreve a casa de “excelente cotação imobiliária”, dotada de benfeitorias públicas como pavimentação, energia, iluminação pública, etc. Aponta “razoáveis condições estruturais” apesar do “péssimo estado de conservação” dos forros, instalações sanitárias, elétricas e hidráulicas do 2º pavimento. Foi admitido, no entanto, o bom estado do 1º pavimento.
A má conservação do pavimento superior e as boas condições do porão não eram nenhuma surpresa. O porão, dividido em dois, era ocupado, de um lado, pela lanchonete de João Alves Batista, que alugava o cômodo há 26 anos. Segundo um membro da família, quem “administrava” a propriedade era Leonor Naves, que, através de uma imobiliária da cidade, recolhia o pagamento do aluguel e rateava o valor entre os herdeiros, de acordo com a porcentagem que cada um tinha direito. O contrato com a lanchonete venceria apenas em outubro, mas a imobiliária havia comunicado que o novo proprietário queria o ponto. Como havia uma sala desocupada ao lado do palacete, João fez um acordo e saiu no dia 15 de julho. No outro cômodo funcionava uma casa de loterias, que fechou as portas neste mesmo dia 15.
Já o pavimento superior encontrava-se abandonado há vários anos. O histórico da ocupação desta casa merece um breve relato: depois da morte de Naves, o palacete abrigou, de 1945 a 1951, o Hospital de Clínica Médico-cirúrgica e Ortopedia de Uberaba — o primeiro hospital ortopédico do Brasil Central. Depois, tornou-se uma pensão. A partir de 1961, abrigou parte do Fórum Mello Viana, cujo prédio submetia-se à uma reforma, concluída quase no final da década. No anos 70, voltou a ser pensão e república de estudantes. O último locatário foi um empresário, dono de uma pizzaria chamada Fogão de Lenha, que nem se preocupou em retirar a enorme placa de seu comércio quando saiu do imóvel, em meados dos anos 90. Essa placa ficou dependurada durante vários anos, rasgada, suja e mofada.
Já foi dito que relegar um imóvel ao abandono é similar a uma ordem de demolição. É evidente que a falta de cuidados leva à lenta degradação. E muitas vezes esse desprezo é proposital, pois serve de pretexto para eventuais pedidos de demolição. Idivaldo chegou a ser acusado de usar esse expediente, como veremos à frente.
Voltemos ao laudo. O relatório da Esape aponta descaracterização da fachada do imóvel: a escada original fora obstruída e os pontos comerciais instalados no porão haviam alterado as divisões internas do projeto original. O laudo acusa deficiências na ventilação e iluminação natural, assinala “péssimo estado de conservação” em vidros, esquadrias, janelas de madeira e na pintura, e indica fissuras na fachada e cupim nos forros. Na fachada lateral, anota problemas no sistema de coleta de águas pluviais, responsáveis, segundo o laudo, por parte das infiltrações.
De acordo com a própria avaliação da Esape, a construção “não oferece, até o momento, lesões capaz (sic) de provocar desabamento”. No entanto, alega que, nas condições em que se encontra, o excesso de madeira na construção, proveniente do forro, do piso e de outras peças, aumenta o risco de eventuais incêndios no período de seca.
Conclusões
A conclusão do laudo deixa evidente que o conselho de patrimônio histórico e o proprietário estavam falando duas línguas totalmente diferentes. Enquanto este preocupa-se com seu negócio particular, aquele evocava a defesa da história, da cultura e da memória da cidade. Enquanto um desprezava o valor histórico do palacete, o outro não levava em conta o prejuízo do proprietário. O laudo aponta que houve perda de harmonia econômica, pois o terreno passara a valer mais que a construção. Registra “mau aproveitamento do terreno tendo em vista em se tratar de construções antigas e obsoletas, causando prejuízos ao proprietário pelo não aproveitamento do imóvel” impedindo-o de “obter a renda justa”. Afirma que a construção “não oferece as mínimas condições de recuperação ao ponto de atender o mercado imobiliário e consequentemente atender às expectativas do proprietário no que se refere a imobilização do capital empregado”. E termina assinalando que, economicamente, só a demolição permitiria o aproveitamento da área.
A tropa avançava. Baseando-se nesse laudo, os advogados argumentam que, se o imóvel viesse a sofrer ou provocar qualquer avaria nas proximidades, a responsabilidade seria da prefeitura, pois o proprietário não tinha condições financeiras para “mantê-lo, restaurá-lo ou vigiá-lo adequadamente”. Alegam que, caso a decisão do conselho pelo tombamento provocasse perda econômica, o município seria obrigado a indenizar o proprietário. Afirmam que valores sociais inconscientes de uma coletividade não podem lesar direitos individuais. Para eles, “o bem de valor histórico e artístico deve ser preservado, concomitantemente ao direito de propriedade dos indivíduos”. Além disso, afirmam que, se depois do tombamento o proprietário não fosse ressarcido, estariam dispostos a exigir indenização por via judicial. Em certo momento, chegam a afirmar que donos de imóveis normalmente não agem “de forma a incentivar esta valorização histórico-artística de seu patrimônio”.
De acordo com o decreto-lei n° 25 de 30 de novembro de 1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, o proprietário do bem tombado que não dispuser de recursos para a conservação deve informar a necessidade das obras ao serviço de patrimônio histórico, que, por sua vez, deve executá-las às custas do poder público. Caso contrário, o proprietário poderá requerer que seja cancelado o tombamento. Pois bem. Com isso, afirmavam que Idivaldo não possuía os recursos para a manutenção do imóvel e alegavam que a própria coletividade deveria suportar os custos do bem que ela mesmo entendeu ser digno de conservação.
Nos finalmentes, argumentam que o processo de tombamento de um imóvel traz sérias responsabilidades que vão muito além da simples vontade de tombar. Alegam que é muito fácil “escolher um imóvel e, como que em um ‘passe de mágica’, tombá-lo, deixando toda a responsabilidade de manutenção, vigilância e restauração às expensas do proprietário.” Para eles, “tal atitude seria como ‘gerar um filho’ e virar-lhe as costas, literalmente, ‘deixando todas as responsabilidades inerentes ao ato com o primeiro que encontrar pela frente”. E finalizam dizendo que é muito fácil fazer cortesia com o chapéu alheio. Assim, concluíam que, se a Prefeitura não possuísse os recursos no orçamento para “manter, restaurar e vigiar ” o palacete, deveria desistir da idéia de tombá-lo.
Ataque
O bombardeio intensificava-se. Em um requerimento encaminhado no dia 28 de maio ao presidente do Codemphau, José Thomaz da Silva Sobrinho, os advogados alegam que já haviam alertado sobre os riscos de desmoronamento e informam que, após uma forte chuva na noite de 20 de maio, ocorrera o “desabamento do telhado de parte do imóvel”. Anexam fotos e cópia dos relatórios de ocorrência dos bombeiros e reiteram o dever da Prefeitura em restaurar o imóvel.
Um desse relatórios, assinado no dia 21 de maio pelo cabo Carlos Eimar Elias, registra que o destelhamento ocasionado pela chuva deixara “a parede exposta para rua comprometida com trincas e rachaduras, colocando em risco pedestres e veículos”. Informa também que os bombeiros decidiram isolar a área. As fotos mostram detalhes do cômodo dos fundos parcialmente destelhado. O outro, assinado no dia 27 pelo cabo Gustavo Ferreira Delfino, menciona rachaduras, infiltração e cupins, “suspeitando-se aparentemente de risco de desabamento”. O cabo orienta Idivaldo a procurar um engenheiro de segurança para fazer uma análise mais técnica.
A artilharia mantinha-se firme. No dia 16 de julho é enviado mais um requerimento ao Codemphau pedindo o cancelamento do tombamento provisório. Desta vez a alegação era de que haviam sido ultrapassados os prazos de 15 dias para sustentação do tombamento e 60 dias para a decisão administrativa. Os advogados entendem que essa “inobservância dos prazos processuais” caracterizava “tanto a falta de interesse do poder público, quanto o desrespeito aos ditames legais e aos princípios constitucionais”. Essa questão dos prazos será discutida mais a frente.
A batalha ficava cada vez mais feroz. Na terceira semana de julho, mesmo com o processo em andamento, Idivaldo entrou com um pedido de demolição na Secretaria Municipal de Obras. Osório Joaquim Guimarães Neto, o secretário de obras, fez uma consulta ao Codemphau para saber se poderia emitir o alvará. Sonia Fontoura respondeu que havia impedimento, pois, com a notificação da co-proprietária, o processo estava em nova fase e a edificação estava provisoriamente tombada. Sonia esclarecia também que o laudo desfavorável emitido pelo cabo do Corpo de Bombeiros se referia, na verdade, a um cômodo de 15m2, construído nos fundos do terreno — quando no palacete funcionou um hospital — não sendo, portanto, parte integrante da casa histórica em processo de tombamento. Por fim, deixava claro que, conforme o laudo realizado em março, não havia risco de desabamento do palacete em si. O alvará, portanto, não foi autorizado.
Bomba desarmada, pensaram todos. Mas esse alvará negado, na verdade, era uma isca. Veremos isso mais à frente.
Em 5 de agosto, José Thomaz é notificado pelo advogado de Idivaldo para que, caso não acate os pedidos do proprietário, proceda ampla reforma do prédio “ante o iminente risco de desabamento (…) conforme atestado oficialmente pelo Corpo de Bombeiros e por perícia técnica, d’onde se conclui que a demolição é inevitável”. A notificação insiste que “reparos não serão suficientes para afastar os riscos de desabamento”. É possível observar que a tática adotada era repetir exaustivamente a idéia de que o prédio estava por cair a qualquer momento.
Neste ponto, perante a alegação do risco de desabamento causado pela chuva, convém evocar aquele laudo técnico da Esape, realizado três meses antes, anexado ao próprio processo de Idivaldo, onde está registrado que “a construção em pauta não oferece, até o momento, lesões capaz (sic) de provocar desabamento”. Para eles, o que ameaçava o prédio, além de sua lenta deterioração natural, era a existência de “excesso de materiais combustíveis (madeira) provenientes do forro, assoalho, portas, cobertura etc., que com a chegada do período de seca, aumenta o risco de acidente”.
Contra-ataque
No dia seguinte, José Thomaz encaminha todo o material (processo de impugnação, laudos técnicos dos bombeiros, requerimento solicitando que o conselho assumisse o imóvel, pedido de extinção e arquivamento do processo e cópias de documentos) para o conselheiro e advogado Alaor Ribeiro. Era hora do contra-ataque. Alaor examinou a documentação e trabalhou na redação de um parecer. Neste documento, assinado em 22 de agosto, ele reafirmou a posição do conselho, frisando que havia interesse público na preservação do valor histórico e artístico do palacete. Citou os princípios constitucionais e os artigos da Lei Orgânica do Município que recomendam a proteção do patrimônio cultural da cidade e estabelecem as punições, assinalou a legitimidade do tombamento como instrumento de planejamento urbano e evocou a colaboração da comunidade para a proteção desse patrimônio “por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação”.
O conselheiro esclareceu que essas leis municipais e federais são os instrumentos jurídicos para a atuação do Codemphau — o órgão institucional que delibera sobre o valor histórico e artístico dos bens municipais, “sejam públicos ou particulares”. Ele argumentou que o patrimônio cultural “pertence à comunidade que produziu os bens culturais”, e reivindicou a autonomia do Codemphau nas deliberações sobre o assunto na cidade.
Para ele, a preservação do bem histórico está vinculada à sua utilização e integração ao cotidiano da comunidade. “A ação do poder público é exercida em caráter excepcional, onde faltarem recursos técnicos, materiais ou organizações coletivas capazes de assumirem as ações necessárias para a preservação do bem cultural, procurando-se evitar a especulação e o mau uso da propriedade”. Lembrou que o Codemphau é integrado por profissionais cientes de suas funções institucionais de preservar a memória da cidade, independente das “pressões naturais de interesses pessoais, políticos e econômicos, compreensíveis mas que podem sucumbir diante do interesse público”. Para ele, o “interesse público sobrepõe ao interesse particular”.
Sobre os laudos dos bombeiros, Alaor Ribeiro alegou que eles não tinham “nenhum valor técnico” pois, eram assinados por dois cabos, pertencentes à 3ª Cia Independente de Bombeiros Militar, “a pedido da parte interessada, que não têm competência técnica e nem funcional para manifestar-se em nome da Companhia de Bombeiros local”. Além disso, laudos anteriores comprovavam a solidez da edificação e desmentiam o risco de desabamento.
A propósito, o arquiteto e conselheiro do Codemphau, Marcondes Nunes Freitas, havia feito um novo laudo técnico, no dia 20 de agosto, desta vez na presença de Idivaldo que o acompanhou pelos cômodos da edificação. Sonia Fontoura e José Thomaz também os acompanharam na vistoria. O laudo constatou bom estado de conservação do tijolo maciço e da estrutura de madeira e da alvenaria em geral, apesar do cupim em algumas peças do piso. A estrutura do telhado foi considerada regular. O telhado em si, assim como as calhas, condutores e o coroamento estavam bons. O reboco e os elementos artísticos foram considerados bons, notando-se a presença de algumas trincas. A platibanda necessitava de pintura, e foi notada a falta de alguns artefatos. A pintura em geral, os forros de madeira, o ladrilho hidráulico e as vedações de portas e janelas foram avaliadas como “ruim, necessitando intervenção”. O muro foi avaliado como regular, e o gradil ruim. Os outros elementos externos, tais como varanda, escada e torre estavam bons. Para Marcondes, definitivamente, o prédio “não corria nenhum risco de desabamento”.
De volta ao parecer. Sobre a reivindicação do prazo esgotado, Alaor argumenta que, com a recente notificação da co-proprietária, Maria de Lourdes, no dia 26 de julho, o processo estava em curso, “aguardando a manifestação da interessada quanto ao tombamento do imóvel”. Além disso, alegou que Idivaldo, como co-proprietário, não teria poderes para representá-la, ou seja, não poderia manifestar-se por ela. Para o conselheiro, Idivaldo estaria atropelando o trâmite do processo administrativo “ao tentar forçar uma tomada de posição precipitada”, passando por cima do direito da co-proprietária que deveria ser tratada “nas mesmas condições dos demais interessados”.
Neste momento, convém esclarecer definitivamente essa questão dos prazos legais. De acordo com a lei, quando o proprietário é notificado, o imóvel já está provisoriamente tombado. O dono do imóvel tem um prazo de 15 dias para, caso não concorde, entrar com o processo de impugnação. Depois desse prazo, se não houver o pedido formal, basta um despacho do presidente do conselho para inscrever o bem no Livro do Tombo e concluir o tombamento definitivo. Maria de Lourdes Naves não havia se manifestado. Quando o proprietário entra com o processo no prazo, o conselho tem mais 15 dias para sustentar o pedido de tombamento, e depois mais 60 dias para proferir decisão final. De acordo com a lei, “dessa decisão não caberá recurso”.
Mas o próprio Iphan entende que não existem prazos determinados para a deliberação final de um processo de tombamento. “Por se tratar de uma decisão importante e criteriosa, muitos estudos devem ser realizados para instrução do processo e, conforme sua complexidade, cada caso demandará prazos diferenciados”, registra em seu sítio na Internet (www.iphan.gov.br).
Voltemos. Alaor Ribeiro concluiu que os pedidos do co-proprietário não deveriam ser acatados, e que a posição da Secreteraria de Obras seria “contra a pretensão de demolição”. Além disso, informou que a co-proprietária deveria se manifestar até o dia 27 de setembro, (dois meses após a publicação da notificação no Porta-Voz), “sob pena de ser nomeado curador para defesa de seus interesses processuais”.
No dia 26 de agosto, uma Folha de Informações e Despachos (FID) da Procuradoria registrou que o procurador foi contrário ao acatamento do pedido de demolição, “uma vez não caracterizado o risco de desabamento que serviu de suporte ao pleito”. Informou também que os advogados de Idivaldo estavam cientes do parecer de Alaor Ribeiro. Conclui sugerindo que a Fundação Cultural dê “normal e ágil tramitação ao processo”. Nessa mesma FID, o advogado de Idivaldo declara ter recebido os documentos para instituir eventual ação judicial.
Ataques e contra-ataques
Enquanto perdurava o processo administrativo, Idivaldo partiu para a guerrilha: foi acusado de deixar as janelas e portas abertas — de propósito — para que as paredes e assoalhos fossem atingidos pela chuva e o palacete ficasse vulnerável a invasores. O provável objetivo seria fornecer mais pretextos para a demolição. No dia 2 de setembro, passando de carro na rua Manoel Borges, em frente ao palacete, Sonia Fontoura e o historiador Augusto Rischiteli perceberam a estratégia. Acionaram a polícia, e realizaram um Boletim de Ocorrência, registrando que o prédio provisoriamente tombado encontrava-se com o portão destrancado, com as portas e janelas abertas, “propiciando a entrada de vândalos e ou possível deterioração”, além de “poder ser utilizado por infratores e ou criminosos, podendo comprometer a segurança pública no local”. Naquele dia, eles mesmos — Sonia e Augusto — fecharam o portão. Ainda assim, passados alguns dias, as janelas do palacete continuavam abertas. No dia 10 de setembro o Codemphau enviou uma notificação a Idivaldo, exigindo que fechasse a casa, cumprindo a deliberação do conselho. Segundo Sonia, depois disso a casa foi trancada.
No dia seguinte, Idivaldo enviou um requerimento à Prefeitura, questionando se o município detinha orçamento para a reforma do prédio. No mesmo dia a Procuradoria encaminhou o pedido à Fundação Cultural. José Thomaz respondeu no outro dia, informando que não tinha orçamento. Além disso, alega que essa despesa era de responsabilidade do proprietário, “uma vez que o domínio lhe pertence”. A despeito do laudo favorável do próprio Codemphau, José Thomaz declara estar ciente “do posicionamento técnico da Secretaria de Obras, onde se denota a existência de riscos de desabamento”. Dado isso, registra que a Fundação Cultural não assume nenhuma responsabilidade, porque a manutenção da solidez da obra seria obrigação do dono.
Da mesma forma, o secretário de obras, Osório Guimarães, afirma não ter orçamento para esse tipo de despesa. Ao mesmo tempo, reitera a “necessidade imperiosa, e com a maior urgência, de reforma no prédio”, e assinala que “não assume qualquer responsabilidade pela segurança e solidez da obra”. O secretário ainda esclarece que o alvará de demolição não fora autorizado porque o impedimento estava respaldado juridicamente pela Procuradoria. Essas declarações, como se verá mais a frente, serão peças chave no vitorioso mandado de segurança — impetrado contra Osório Guimarães — que finalmente garantiu a Idivaldo a licença para demolir o prédio.
Uma semana depois, o advogado envia uma contranotificação à Fundação Cultural, dizendo já ter avisado que Idivaldo não tinha “a menor condição de restaurar, manter ou dioturnamente vigiar” o palacete que comprara. Afirma que o proprietário verifica, “sempre que possível”, o estado do imóvel, já tendo consumido mais de 20 cadeados e várias trancas para fechar janelas, portas e portões abertos por “mendigos e andarilhos” que passaram a noite por lá. Conclui reafirmando a responsabilidade do poder público perante o imóvel.
Mais contra-ataque. O prazo para a manifestação da co-proprietária, Maria de Lourdes, havia se esgotado. No dia 3 de outubro é enviada uma notificação a um dos advogados de Idivaldo, designando-o a responder por ela, como curador, no prazo de 10 dias. Como não houve manifestação, no dia 1º de novembro o conselho nomeou a advogada Simone Ribeiro da Silva para responder pela proprietária. Em um parecer assinado no dia 18, a advogada registrou que, na qualidade de proprietário parcial, Idivaldo Odi Afonso, não teria poder de representação pela outra co-proprietária. Por isso, considerava nulo o pedido de demolição do imóvel. A curadora reconhece o valor histórico e artístico do Palacete Antônio Pedro Naves, concorda com a sua preservação e discorda da demolição para exploração comercial. No dia 27, o Codemphau remete a Idivaldo o parecer de Simone Ribeiro. O conselho estabelece um prazo de 5 dias para que ele se manifeste, o que não ocorreu.
Tombamento definitivo
Neste mesmo dia, o advogado e conselheiro Alaor Ribeiro assinou o parecer final, decidindo pelo tombamento definitivo. Nesse parecer, registra que, no início do processo de impugnação, o co-proprietário ateve-se a discorrer sobre a legislação e fazer ameaças descabidas ao Codemphau, demonstrando ser “mero especulador comercial do imóvel”. Entende que o processo de impugnação em nenhum momento entrou no mérito da questão — ou seja, Idivaldo não atacou o valor histórico e artístico do palacete. Para o conselheiro, isso significava que o proprietário sabia que esses elementos estavam presentes e eram legítimos na justificativa do tombamento. Da mesma forma, não houve contestação à documentação para fundamentar o tombamento (referências bibliográficas, fotográficas e conclusões do Conselho de Patrimônio Histórico), e tampouco impugnação à notificação da co-proprietária que, por sua vez, não havia se manifestado no prazo legal.
Desconsiderou a ocorrência dos Bombeiros sobre o desabamento parcial, por se tratar de uma “garagem independente” que não fazia parte do imóvel em processo de tombamento. Acusa o “tom ameaçador” da notificação “extrajudicial” ao presidente do Codemphau, assim como a decisão de Idivaldo de deixar o imóvel aberto com as portas “escancaradas” para tentar justificar a demolição e, “segundo informações, para se instalar no local um estacionamento de automóveis de alta rotatividade”. Evocou o laudo de vistoria realizado pelo arquiteto e conselheiro Marcondes Nunes de Freitas — onde foi confirmado o bom estado de preservação — e a nomeação de curadora para a co-proprietária ausente, cujo parecer se mostrou favorável ao tombamento. Em um trecho do parecer, Alaor Ribeiro registra que o co-proprietário “ameaçou” buscar a proteção do Poder Judiciário, mas, até aquele momento, “não houve qualquer manifestação da Justiça a respeito da matéria”. Mal sabia que o despacho fatal estaria tão próximo.
Assim, em uma reunião no dia 11 de dezembro (quarta-feira), baseado no parecer final do conselheiro Alaor Ribeiro, o Codemphau rejeita a impugnação e decide pelo tombamento definitivo.
O decreto do Poder Executivo nº 1633 — que determinava o registro do Palacete Antônio Pedro Naves no livro de tombo — estava redigido desde abril de 2002. Para que entrasse legalmente em vigor, só faltava publicá-lo no órgão de imprensa oficial do município, o jornal Porta-Voz. Dessa forma, a edificação estaria definitivamente protegida e irrevogavelmente tombada.
O Porta-voz é impresso semanalmente, e circula às sextas-feiras. Para que os decretos, avisos de licitações e comunicados oficiais sejam publicados, é preciso enviar o texto até a terça-feira da semana de circulação — prazo para dar tempo de preparar e enviar o jornal para a gráfica. Estava tudo certo. Como a reunião se dera no dia 11 de dezembro, uma quarta-feira, o decreto seria publicado na próxima semana, no dia 20. Missão cumprida. Sonia Fontoura, exausta, marcou uma viagem de repouso. Renata Bananal, funcionária administrativa à serviço do Codemphau, ficou incumbida de encaminhar o decreto para a publicação no Porta-Voz, até a terça-feira, dia 17. Depois da exaustiva batalha, era hora do repouso do guerreiro: o palacete estava, afinal protegido… não fosse a última bala no gatilho de Idivaldo: o mandado de segurança.
REVIRAVOLTA
A um passo da destruição
Mandado de segurança abriu outra frente de batalha e garantiu licença para a demolição
Uma outra frente de batalha, ao lado do processo administrativo, havia sido aberta para forçar a demolição do palacete de Antônio Pedro Naves. No dia 7 de outubro Idivaldo entrara com um mandado de segurança, no Fórum Melo Viana, contra o secretário de obras, Osório Guimarães. O objetivo era conseguir uma “tutela judicial autorizativa de
demolição”, já que seu alvará fora barrado na Secretaria de Obras, devido ao impedimento do Codemphau. Quem cuidou do caso foi a juíza da 3º Vara Cível, Régia Ferreira de Lima. Sonia Fontoura, assessora do Codemphau, ficou sabendo do processo através de uma nota no coluna Em Tempo, do jornalista Racib Idaló, no Jornal de Uberaba. A Fundação Cultural não havia sido citada no mandado de segurança.
Nesta ação, os advogados explicam que Idivaldo postulara o pedido de demolição do imóvel “que apresenta sérios riscos em sua solidez”, mas que a Fundação Cultural foi contrária, “sob o pretexto de que o prédio estaria em processo de tombamento”. Afirmam que engenheiros da Secretaria de Obras — incluindo o próprio Osório Guimarães — verificaram “as péssimas condições estruturais e de solidez do prédio”, assim como sua descaracterização arquitetônica. (No entanto, em entrevista ao repórter, o secretário de obras afirmou que não foi pessoalmente ao local na vistoria) Citam trechos da avaliação da Secretaria de Obras, registrando que a edificação não era dotada de arcabouços estruturais, laje, e todos aqueles problemas exaustivamente colocados nos laudos anteriores (irregularidades na alvenaria e instalações elétricas e hidráulicas; janelas e portas que não atendiam às normas atuais de iluminação e ventilação, etc). Citam também a demolição parcial devido a “chuvas e vendavais” do cômodo de “+ ou – 30m2” (Nota: o laudo dos bombeiros mencionava 15m2), mas não informou que se tratava de um cômodo anexo, deixando entender que era parte do imóvel.
O processo segue afirmando que essa proibição evidenciava uma postura ilegal e afrontosa, que ocasionaria “grave lesão” ao direito líquido e certo do proprietário, que se viu prejudicado no “constitucional direito de propriedade”. Alega que a negativa não se amparava na lei, nem em regras administrativas, e que não havia motivo para impedir a “lícita pretenção (sic) do proprietário, quanto ao uso e gozo plenos da propriedade”. Explica que, até aquele momento, não havia um decreto, mas apenas uma ata de uma reunião do Conselho, do início de 2000, decidindo pelo tombamento. Afirma também que o procurador redigiu seu parecer “pensando cegamente na defesa de supostos interesses públicos”, mas ignorando a vontade de Idivaldo, que além de não ter interesse algum na reforma do palacete, também não possuía os “valores avultantes para essa fantasiosa reforma, que seria mais uma reconstrução”.
Os advogados argumentam que a reforma do palacete “não merece aquele enfoque público”, porque o prédio fora descaracterizado e estava “basicamente em ruínas”. Além disso, alegam que a “malsinada reforma” não se mostrava tecnicamente viável e que “questões econômicas conspiram contra essa medida”, tornando a restauração “impraticável financeiramente”. Neste momento, citam um levantamento feito pela Construtora Costa Ferreira Ltda, que avalia os custos da reforma em aproximadamente R$180 mil. Depois disso, fazem comentários em torno do relatório da Esape, argumentando “consequente risco de ruína” e “inconveniência” da reforma.
Os advogados acusam a administração pública de colocar o proprietário “em estado de dúvida e incerteza, uma vez que, de uma opinião de ‘idealistas’, há quase três anos, até o momento, não se chegou a qualquer ato concreto de tombamento”. Para eles, essa atitude impõe restrição ao direito de propriedade sem a adoção das “mais mínimas cautelas” para resguardar o interesse público na preservação. Assim, acusam a Prefeitura de não planejar um orçamento específico para essas “urgentes reformas”. Por tudo isso, alegam que o poder público não teria o direito de dar “esse tipo de tratamento ao proprietário”.
Para reforçar essas acusações, transcrevem aquelas declarações de José Thomaz e Osório Guimarães, registradas em uma FID que circulara de 3 a 6 de setembro, quando constatam a “necessidade imperiosa” e urgente de reforma, ao mesmo tempo em que não se responsabilizam pela “manutenção da solidez da obra”. Nesse momento, os advogados ironizam, afirmando que essa hesitação — vinda da própria autoridade que impunha o tombamento — tinha razão de ser, pois o prédio estaria, de fato, em “iminente risco de desabamento”.
A seguir, mais uma vez, citam o laudo dos bombeiros e anexam fotos do cômodo anexo destelhado que, segundo eles, “comprovam essa situação de ruína do prédio”, e a “inviabilidade da reforma”. Ao mesmo tempo, defendem que a única solução seria construir um novo prédio. Essa associação entre o desabamento parcial do cômodo anexo e as condições estruturais do palacete em si foram exaustivamente exploradas e, como se verá, surtiram efeito.
Por fim, os advogados consideraram um “ridículo absurdo” a situação colocada pela administração pública perante um imóvel que teve “parte destruída em razão de desabamento” devido à chuva, colocando em risco pedestres e veículos, cujo “estado crítico” estaria devidamente reconhecido pela perícia do Esape; pelo Codemphau, através de seu presidente, José Thomaz; pela Secretaria de Obras; e finalmente, pelo Corpo de Bombeiros. Assim, chamam de uma “sinuca” o fato de o proprietário ter em seu imóvel um processo de tombamento, no qual o próprio órgão emanador do pedido reconhece o risco iminente de desabamento e, por sua vez, não possui recursos para restaurá-lo. O proprietário, por sua vez, declarava não ter condições nem interesse para restaurá-lo, “e muito menos vigiá-lo”, e que desejava demoli-lo “para evitar danos a terceiros”.
Depois disso tudo, alegando então que havia ameaça ao direito e abuso de poder, requeriam a concessão de uma liminar determinando que o secretário de obras fornecesse o alvará para que Idivaldo procedesse “imediata demolição”.
No dia 1º de novembro de 2002 um oficial de justiça entregou o ofício de mandado de segurança ao secretário de obras, Osório Joaquim Guimarães Neto, com as cópias dos documentos da ação impetrada contra ele, dando prazo de 10 dias para que fornecesse as informações necessárias.
No dia 11, Osório Guimarães prestou informações à juíza Régia Ferreira, confirmando que Idivaldo havia requerido a licença para demolir o prédio e explicando que a Procuradoria recomendara rejeitar o pedido porque a edificação estava provisoriamente tombada e, segundo o Codemphau, tinha condições de ser recuperada. Reafirmou “preocupação quanto ao estado físico do prédio”, registrando que precisava de “urgentes providências restauradoras” para garantir sua segurança. Informa também que o motivo do tombamento poderia ser explicado à exaustão pelo “lúcido parecer” do conselheiro Alaor Ribeiro, capaz de oferecer todas os esclarecimentos necessários à Justiça. (O parecer é anexado ao ofício.) Osório Guimarães conclui que o indeferimento foi um ato “prudente, cauteloso, absolutamente legal e entremeado a interesses públicos preponderantes, ante a complexidade” da situação.
No dia 20 de novembro é a Promotoria de Justiça que envia um ofício à juíza, salientando que Idivaldo era co-proprietário sub judice, uma vez que era casado em comunhão de bens. Para isso, pedia a inclusão de sua esposa, Maria José dos Reis Guarato Afonso, no processo. Já no dia 25, Maria José é incluída. Além disso, aquele ofício requeria cópias dos documentos, pois logo entraria nessa história um personagem do Ministério Público que desempenhará um papel muito importante, como veremos mais à frente.
No dia 2 de dezembro, a promotora de justiça Sandra Maria da Silva envia outro ofício, afirmando que, pelo que estudara nos autos, não se encontrava “direito líquido e certo” para que o proprietário pudesse demolir o palacete, pois existia o processo de tombamento e a recuperação era possível. Para a promotora, fazia-se necessária a realização de uma “prova pericial” para verificar o estado do imóvel e a conveniência ou não do tombamento, e essa perícia não estava prevista no mandado de segurança. Assim, solicita que a juíza não conceda a liminar. Além disso, requer que cópias do processo sejam remetidas ao Promotor Especializado em Defesa do Patrimônio Histórico e Cultural, Emmanuel Aparecido Carapurnala, para que ele tome as providências que entender pertinentes.
Mas não houve muito tempo para isso. No dia 9 de dezembro sai a sentença fatal.
Sentença
No relatório da sentença, a juíza registra a posição de Idivaldo, relatando que “no exercício do direito de propriedade e por força de interesse e conveniência” postulara a demolição do prédio “que apresenta riscos em sua solidez”. Fala do indeferimento por causa do processo de tombamento, e das “péssimas condições estruturais e de solidez do prédio”, assim como a descaracterização atestada por engenheiros e pela Secretaria de Obras. Menciona a alegação do direito líquido e certo, assim como a postura ilegal e afrontosa do impedimento. Além disso, acrescenta que, no entendimento de Idivaldo, o tombamento não era real, pois não havia decreto do chefe do executivo, mas somente uma ata, assinada em 2000, onde os conselheiros “que não têm poder para a prática do ato opinaram no sentido de tombar o imóvel”. Aponta também que o prédio fora descaracterizado, “está em ruínas” e “não se mostra viável a reformas”, pois o proprietário teria que desembolsar por volta de 180 mil para restaurá-lo. Assinala ainda a existência de laudos comprovando risco iminente de desabamento.
Na referência à posição da Secretaria de Obras, assinala que, para Osório, o indeferimento foi baseado em parecer da Procuradoria, pois o prédio podia ser recuperado e, além disso, estava provisoriamente tombado. Aponta ainda que, com as informações, o secretário juntara “apenas” um parecer do conselho.
Não houve qualquer menção ao texto desse parecer — que explicava, por exemplo, o fato de o cômodo destelhado não fazer parte do palacete; além de apresentar o laudo certificando a solidez do prédio e mostrar que, com a notificação da co-proprietária, o processo havia iniciado nova fase. Da mesma forma, não houve sequer uma alusão à importância histórica, artística e cultural da edificação para a preservação da memória da cidade.
No decorrer da fundamentação da sentença, a juíza faz um resumo da argumentação do proprietário, evocando riscos na solidez do prédio, “atestado inclusive pela secretaria de obras”. Registra que Idivaldo provara a propriedade do imóvel, mas “nada foi juntado com relação ao dito Tombamento provisório”, a não ser a indicação pelo conselho em 9 de fevereiro de 2000. Fala da estimativa do orçamento da reforma e do laudo técnico do “Sr. Perito que presta serviços ao Judiciário”. Diz que os riscos apresentados no laudo, assim como as fotografias, “não foram contestados” nas informações. Falou da falta de orçamento do poder público para restaurar o prédio, ao mesmo tempo em que este admitia a necessidade urgente de reforma e não assumia qualquer responsabilidade pela segurança. Logo mais, citou também o laudo dos Bombeiros.
Em sua análise, a juíza acata a idéia de que o tombamento “não é real”, pois não fora apresentado o “decreto do executivo tombando o imóvel”, mas “apenas um parecer” do Codemphau, juntamente com a ata da reunião do Conselho, datada de 9 de fevereiro de 2000. Ela entendeu que a abertura do processo de tombamento através do órgão competente asseguraria a preservação até decisão final, que deveria ser tomada dentro de 60 dias — “É o que se denomina tombamento provisório, cujos efeitos são equiparados aos do tombamento definitivo”, assinalou. Em seguida, argumentou que “esse tombamento provisório não pode ser protelado além do prazo legal, sob pena de a omissão ou retardamento transformar-se em abuso de poder, corrigível por via judicial”. No seu entendimento, portanto, se a reunião do conselho se deu em 9 de fevereiro de 2000, o prazo legal do tombamento provisório já estava esgotado há tempos, protelá-lo era abuso de poder e, portanto, havia espaço para o mandado de segurança.
Neste ponto, no entanto, há dois esclarecimentos importantes a fazer. Para isso, convém primeiro reproduzir o artigo 10º do decreto-lei nº 25, que organiza a proteção do patrimônio histórico nacional:
Artigo 10º – O tombamento dos bens (…) será considerado provisório ou definitivo, conforme esteja o respectivo processo iniciado pela notificação ou concluído pela inscrição dos referidos bens no competente Livro do Tombo.
Fica claro portanto que, de acordo com a lei, a data do início do tombamento provisório não se dá com a ata da reunião, mas é marcada a partir da notificação do proprietário. Idivaldo fora notificado no dia 11 de abril de 2002. A co-proprietária em 26 de julho do mesmo ano.
A outra questão é em relação aos períodos legais. Seguindo rigidamente os prazos, partindo da notificação de Maria de Lourdes, o tombamento deveria ter-se dado a, no máximo, 90 dias da publicação no Porta-Voz (15 para a eventual impugnação, mais 15 para a defesa do tombamento e 60 para a decisão final), ou seja, até o dia 24 de outubro de 2002. No entanto, no decorrer dessa pendenga, ocorreram fatos não previstos — como a necessidade de nomeação da curadora para a co-proprietária ausente — fazendo com que o conselho concedesse prazos extras. Mas essa questão merece mais discussão jurídica. Para o Iphan, como dito anteriormente, não existem prazos determinados para a deliberação final de um processo de tombamento, pois cada caso demanda um prazo diferenciado. O promotor Emmanuel Carapurnala também entende de forma diferente. (veja entrevista a seguir).
Voltando à sentença, no decorrer de sua fundamentação, a juíza afirma que o direito constitucional de propriedade deve prevalecer sobre o pedido de tombamento. Abraça a versão de que o palacete “é um prédio velho, que poderá a qualquer momento vir a desmoronar” e causar “acidentes graves”, enquanto afirma que o proprietário é uma “pessoa simples” que trabalhara “árduos” 35 anos para adquirir o imóvel.
A seguir, melhor do que qualquer descrição jornalística, é mais esclarecedor reproduzir um trecho da sentença, para mostrar o raciocínio da juíza Régia Ferreira em relação ao patrimônio cultural da cidade.
(…) “Questiono é fundamental investir em reformar um imóvel, que não poderá de forma alguma servir ao comércio?
O autor já alegou que não possui R$200 mil reais para gastar em reformas, a Fundação Cultural não tem interesse em reformar e não possui orçamento, a Prefeitura não tem dotação orçamentária para esse tipo de reforma e também não se responsabiliza pela segurança do imóvel.Novamente questiono: O que é mais primordial para uma sociedade, ter investimentos em educação, saúde, trabalho, saciar a fome daqueles que não tem o que comer, ou reformar prédios velhos com o deleite apenas de “olhar” e num instante em que se fecham os olhos, desaparecem com o tempo?
Ora, penso que é tempo de acordar para o progresso, é tempo de construir para as presentes e futuras gerações.
Não comungo o entendimento de que reformar e tombar um prédio velho é melhor do que construir um novo, moderno e com geração de empregos e progressos tendo uma função social, mais abrangente.
Necessário se faz repensar sobre a priorização do que é mais satisfatório para uma sociedade que anseia por progressos e modificações.
Prédios tombados, na cidade, pelo que percebo tem aos montes, e todos estão fechados, sem reformas a ponto de caírem, pois, os proprietários não tem interesse em investirem nesses casarões.” (…)
Para ela, o “direito líquido e certo” estava comprovado pelo direito de propriedade, pelo interesse do proprietário, pelos riscos de acidentes e pelo próprio estado do palacete — “prédio em ruínas, pondo em risco a segurança dos transeuntes”. Assinalou que uma nova perícia não era necessária, pois já havia laudo técnico e relatório dos bombeiros “confirmando a real situação do imóvel”. Invocou mais uma vez o direito à propriedade, garantido pela Constituição, e afirmou que considerava o pedido de demolição cabível e previsto até mesmo em prédios tombados em caráter definitivo, quando existe o risco iminente à segurança dos transeuntes.
Dado tudo isso, julga procedente o pedido e, em sentença proferida no dia 9 de dezembro, é concedido o mandado de segurança determinando a autorização para a demolição. O fim estava muito próximo. Idivaldo comemora e vai agilizando os procedimentos para derrubar o prédio. No dia 11 a sentença foi publicada. No dia 12 foi expedido o ofício ao secretário de obras, determinando a liberação do alvará. Na sexta-feira 13, Osório Guimarães recebeu o ofício, liberou o alvará e o palacete Antônio Pedro Naves, uma das edificações mais significativas do patrimônio cultural da cidade, começou a ser demolido. Primeiro foi destelhado. Depois, as paredes internas foram derrubadas. Finalmente, a fachada destruída. Na manhã de domingo, o 2º piso já estava praticamente em ruínas. Na segunda-feira, os comerciantes foram abrir as lojas e não acreditavam no que viam. Aquele casarão, destruído…
REVIRAVOLTA
Ministério Público entra com recurso para rever sentença
Objetivo é analisar a possibilidade de uma ação de indenização por danos morais causados à coletividade
No dia 12 de fevereiro de 2003, o promotor de justiça Emmanuel Aparecido Carapurnala, especializado em Defesa do Patrimônio Histórico e Cultural, entrou com um recurso de apelação ao Tribunal de Justiça, em Belo Horizonte, pedindo a revisão da sentença que autorizou a demolição. O objetivo é avaliar a possibilidade de instaurar uma ação civil pública contra Idivaldo, exigindo indenização por danos morais causados à sociedade.O primeiro ponto considerado irregular é a ausência do chamamento à Fundação Cultural no processo de mandado de segurança. “Sendo parte interessada, a Fundação Cultural não foi validamente citada”, embora sua presença fosse obrigatória e indispensável, já que o Codemphau — o órgão responsável pelas ações relativas ao patrimônio histórico da cidade — trabalhava justamente no tombamento do palacete, assinala. Para Carapurnala, não havia como negar o interesse jurídico do Conselho neste processo; e sem sua presença, “a relação processual jamais foi completada”. Assim, afirma que se a Fundação Cultural tivesse comparecido ao processo, em razão das informações que tinha a prestar, provavelmente a decisão da juíza teria sido diferente.
O promotor escreve que, dado o valor cultural demonstrado em pesquisa histórica, o Palacete de Antônio Pedro Naves “constituía-se de verdadeira relíquia”. Ele esclarece que as alegações de que o prédio ameaçava ruir eram contestadas por outros laudos. “Não se nega que o imóvel necessitasse de reformas, contudo, nada justificava sua demolição”. Carapurnala constatou que os laudos dos bombeiros se referiam a um imóvel que de fato não pertencia ao conjunto tombado, pois tratava-se de um “barracão” construído nos fundos. Em relação a alegada descaracterização, afirma que essa argumentação não era consistente, pois “bastava a restauração de sua fachada, sem qualquer necessidade de demolição”. O promotor menciona também que o laudo pedido por Idivaldo levou em consideração “somente aspectos econômicos que poderiam favorecer ao seu proprietário”.
Quanto aos argumentos da juíza — afirmando que o imóvel não estava juridicamente protegido por falta de um ato oficial — o promotor afirma que “não podem prevalecer”. Primeiro porque, para ele, o valor histórico do palacete antecede ao seu tombamento. Além disso, entende que a prova mais contundente de que havia um processo em andamento eram “as investidas do proprietário na fase administrativa”, ou seja, o próprio processo de impugnação. Carapurnala afirma ainda que, em investigação da Promotoria de Justiça, confirmou-se que o imóvel foi “efetivamente tombado” no dia 11 de dezembro.
No entanto, à despeito dessa discussão sobre datas, o promotor argumenta que, “verificando o interesse histórico do imóvel, impõe-se ao Poder Público (e também ao Judiciário) a obrigação de preservar o bem, independentemente de tombamento definitivo”. Assim, cita um trecho de Paulo Affonso Leme Machado, dizendo que, enquanto se discute o tombamento, o bem deve permanecer intocável; “caso contrário, as forças de destruição, que, em geral, são mais rápidas, se põem em ação”.
Citando trechos do Manual do promotor de justiça, de Hugo Nigro Mazzili, diz também que o tombamento não é o único sistema de proteção ao patrimônio cultural. Há leis específicas que protegem monumentos arqueológicos, defendem os direitos de autor e protegem propriedades contra vandalismo e pichações. O Código Penal também prevê a proteção do patrimônio público tombado e do não-tombado.
Além disso, para Ministério Público, nesse caso não era cabível a ação do mandado de segurança. “Qual o direito líquido e certo de uma pessoa demolir um prédio que está protegido administrativamente contra a demolição?”, questionou, em entrevista ao Revelação. No recurso, o promotor assinala que o procedimento de tombamento provisório transcorrera dentro dos parâmetros estabelecidos pela legislação. Dessa forma, cita também o trecho da Constituição que inclui o tombamento entre os meios de proteção do patrimônio cultural brasileiro.
Sobre a argumentação da juíza de que a manutenção do palacete não cumpria função social, o promotor argumenta ser incorreto o raciocínio que liga a função social ao “lucro” que ela possa proporcionar, pois há muitos ângulos para analisar os benefícios de um bem para a sociedade. “Por óbvio, a função social do imóvel, em tais casos, é aferida exatamente pelo conteúdo histórico e cultural posto à disposição de toda a população”. Para ele, o culto à memória é um “valor social cujo conteúdo econômico não se pode mensurar”.
Ele insiste em considerar um erro a concepção de que a função social da propriedade está diretamente ligada ao fator produtividade. Para ele, este conceito está ligado a todo e qualquer benefício social advindo da propriedade, inclusive na área ambiental. Assim, argumenta que se uma propriedade rural com altos índices de produtividade não respeita normas ambientais, descumpre sua função social. “Portanto, o imóvel demolido estaria cumprindo sim sua função social, caso tivesse sido preservado em favor da sociedade uberabense”.
Hoje, o processo está sendo analisado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
Reportagem publicada no “Revelação”, jornal-laboratório do Curso de Comunicação Social da Universidade de Uberaba (UniUbe), nº 244, em 29 de abril de 2003.