– Passaporte?
Enquanto buscávamos o documento na mala, o agente da alfândega indaga:
– De onde vocês são?
– Brasileiros.
– Podem passar.
Esse foi o primeiro contato, de forma positiva, quando de nossa chegada a Havana, na madrugada do dia 30 de dezembro último. Sem terem verificado os nossos documentos, de Heloísa e meus, e nem as malas, atravessamos aquele espaço e logo outro funcionário nos chama um táxi.
O carro toma a direção da cidade, quando perguntamos se não iria ligar o taxímetro, e ele responde que o valor é fixo: 20 pesos cubanos conversíveis. Essa moeda é única no País, tem valor de 20% sobre o dólar americano e o primeiro passo é a pessoa fazer a conversão.
Ruas tranqüilas, com movimento na madrugada, as pessoas andando pelas calçadas. Indagamos sobre a população da Capital cubana, que tem em torno de 2,5 milhões de habitantes, e quanto à violência na cidade. O taxista foi incisivo, dizendo que não existe:
– Aqui você pode andar a qualquer hora, do dia ou da noite, que não será importunado”, disse. Explicou que o índice de violência é pequeno, mas fez o alerta: “Claro, você deve tomar precauções como em qualquer lugar”.
Chegamos ao hotel, o Havana Livre, classificado como quatro estrelas. É antigo, muito bonito e bem conservado. Na exposição de fotos logo na entrada a indicação de que, construído pela rede Hilton e considerado um dos prédios mais altos das Américas àquela época, foi inaugurado em março de 1958 e ocupado pelo Comando da Revolução em janeiro de 1959. É, como todos os empreendimentos em Cuba, de propriedade do Governo, que o administra.
Esses primeiros contatos nos aproximaram de um passado não muito distante, mas cuja história encantou e marcou minha geração: o movimento de libertação de Cuba da ditadura de Fulgêncio Batista, liderado pelos jovens Fidel Castro e Ernesto Che Guevara, que coincidentemente estava completando 50 anos nesses dias. Era como a realização de um sonho de juventude: conhecer a ilha que ousou, lutando pela sua libertação, conquistou-a, e também viu importantes avanços nas áreas da educação e da saúde.
No dia seguinte, fizemos um passeio pela cidade, com uma jovem guia entusiasmada com a revolução e orgulhosa de sua condição de cidadã. Mostrou a parte antiga, relacionou cada espaço com o período que antecedeu o movimento revolucionário, para justificar a ocupação de casas e prédios, e o que aconteceu em seguida. Havana conserva as características do período colonial e possui numerosas construções históricas valiosas e monumentos erguidos nos séculos XVI e XVII. Por sua localização privilegiada, era no passado um importante porto na rota do ouro entre a Espanha e a América, o que a tornava alvo de ataques piratas. Para protegê-la, construíram um sistema de defesa, como a fortaleza de La Fuerza, el Morro y la Punta. No século XVIII já existiam vilarejos e pequenas praças que formavam seis quilômetros de fortificação, que integram a Havana antiga, já declarada ‘Patrimônio da Humanidade’ pela Unesco. Na Plaza de Armas, dois museus, fundamentais para os que querem conhecer a arte e a história cubanas.
A cidade é limpa, nas ruas e demais espaços públicos. Não há poluição visual nas ruas, apenas algumas faixas e cartazes saudando a Revolução. O trânsito é tranqüilo, o movimento de carros não é tão grande, e há um grande número de veículos antigos ainda circulando, a maioria servindo como táxis. As pessoas, educadas, andam nas calçadas sem atropelar os outros.
Quando passou um ônibus novo, a guia nos indica: “Foram doados pelo Governo brasileiro”. Os cubanos pouco conhecem do Brasil, só as tradicionais lembranças de futebol e carnaval.
Na conversa com as pessoas, os desabafos já não são mais contidos. Elas revelam sinais do desencanto com o regime. Se num primeiro momento tiveram conquistas, o passar do tempo com esse sistema autoritário foi desgastando as relações. O que os revolucionários combateram, a corrupção e a prostituição das mulheres, já voltam em níveis que assustam. O custo de vida é alto, os salários são muito baixos e a cesta básica contém simplesmente arroz, feijão e óleo.
Um vazamento de água isolou os seis elevadores do hotel em que estávamos, que tem mais de 400 apartamentos, por dois dias (30 e 31) sem que fosse dada qualquer explicação ou alternativa aos hóspedes, e mostrou a lentidão nas decisões e providências. Como estávamos no 22º andar, tivemos que subir e descer a pé as escadas.
No réveillon, no Tropicana, um clube ao ar livre, com preços caros, o jantar farto contrastava com a situação humilde dos dançarinos. Muito profissionais, apresentaram um belo espetáculo de dança e, ao final, gentis, numa importante interação, dançavam com os visitantes. Quando paravam nas mesas, na conversa acabavam relatando a vida difícil, numa dura rotina de segunda a segunda, com salários de 25 dólares por mês, em dedicação exclusiva. O taxista que nos levou igualmente tem remuneração nessa faixa. Falou bem das áreas de educação e saúde, mas lamentou a situação financeira, de muitas e longas privações. Disse que as mudanças têm sido lentas demais.
Em Varadero, uma pequena cidade de hotéis à beira mar, distante 140 km de Havana, as belas praias, a areia fina, as águas em várias tonalidades do azul, marca registrada do mar do Caribe, e a movimentação nos hotéis. Três fartas refeições ao dia, incluindo bebidas, como o vinho espanhol; bares com consumo incluído na diária, e muitas atividades com animadores, inclusive espetáculos de música e dança nas noites, todas as noites. Nas conversas rápidas com os atenciosos empregados, o desencanto com a situação, notando-se, em alguns momentos, que eles, sem acesso à comida, acabam por embolsar fatias dessa comida para comer ou levar para a família, em casa.
Duas brasileiras que encontramos na viagem de volta ao aeroporto, já na despedida, falaram de suas experiências, do que viram e sentiram. Elas se mostraram muito decepcionadas com o machismo vigente, quando as empregadas dos hotéis são proibidas de ter relacionamento com os hóspedes, sendo demitidas em caso de denúncia, o que é permitido aos homens, e as muitas regalias de quem é próximo do poder, com influência, mansões à beira mar etc.
No aeroporto, cada passageiro, que já pagara a taxa de embarque, tem outra taxa, de 25 pesos cubanos conversíveis.
Num balcão do aeroporto, um professor, formado em Geografia e Administração, sem alternativa de emprego, estava escalado para vender mapas. Na rápida conversa, mostrando-se frustrado, diz que ele e a mulher tinham apresentado ao Governo uma proposta para sair do País, em busca de melhores condições de vida. “Não interessa para onde. Queremos é ter uma vida digna”, disse
Fora os ufanistas discursos oficiais lembrando os 50 anos da Revolução, essa é a dura realidade de um País que muito lutou para obter a libertação da condição de vida humana degradante e que a vê retornar em níveis ainda mais agressivos, beneficiando poucos e asfixiando a maioria.
Publicado na edição de 11.01.2009 do “Jornal Opção”