Francisco Machado Netto, pioneiro em Iturama, MG
Chiquinho simbolizou uma época em que as pessoas tinham palavra e a honravam
Organizado em seus negócios e rigoroso em seus compromissos, Francisco Machado Netto, desde cedo muito trabalhador e responsável, viveu um tempo distante, quando as pessoas tinham palavra e a honravam. De muita visão, era firme em suas convicções e estava sempre disposto a ajudar. Desde criança tratado com Chiquinho – por ter o nome do avô paterno –, era muito querido, bonito, gostava de bailes e de dançar – dançava bem, como lembram as filhas e o filho, que seguiram os seus passos e também gostam de dança – e foi uma pessoa extremamente afetiva. Curioso, ainda jovem aprendeu a dirigir o caminhão do pai, Justino Machado, que depois comprou um carro, e logo já entendia tudo de veículos, o que muito o ajudou quando decidiu deixar a família e São Paulo, no início dos anos 40, para se aventurar por Minas Gerais, na região próxima ao seu Estado natal.
O comércio de produtos diversos, que trazia de São Paulo, foi a sua primeira atividade profissional, como vendedor ambulante; ele gostou da região, granjeou respeito e se fixou. Já instalado em Iturama, MG, como proprietário rural, foi um dos primeiros a ter carro na cidade e nunca ficava na estrada por um defeito qualquer do veículo, que consertava e seguia adiante. Habilidoso ao volante e conhecedor de mecânica como poucos, logo passou a ensinar os fazendeiros a dirigir, sempre recomendando prudência e bom senso ao novo motorista.
– “Nunca ultrapasse um caminhão na descida e nem ao atravessar uma ponte”, gostava de ressaltar, quando estava ensinando, lembrando o risco que representava entrar na frente de um veículo em alta velocidade e com carga pesada. “Não freie nas curvas”, frisava, para resumir: “Não arrisque a sua vida”.
Justino e Marianna
Paulista de Cajuru, onde nasceu no dia 13 de novembro de 1904, Francisco Machado Netto cresceu nessa região, ajudando o pai na lida diária do meio rural, de criação de gado e lavoura de café. Na época já firmava a sua opção por trabalhar a terra, que o perseguiu por grande parte de sua vida e vinha de seu avô, Francisco Machado de Moraes – grande produtor de café naquela região, que ia sempre à Capital, no Rio de Janeiro, para conversar com dom Pedro II. Filho mais velho de um total de oito, dos quais cinco mulheres, Chiquinho era forte, não fugia das tarefas pesadas e nem tinha medo de nada; teve uma convivência intensa com o pai – desde criança e até se definir por outra atividade profissional, já adulto –, o que estreitou o relacionamento entre os dois, e a admiração recíproca.
Justino Machado de Moraes, mineiro de São Sebastião do Paraíso, nasceu no dia 12 de dezembro de 1878, passou boa parte de sua infância e adolescência em sua cidade natal, mudando-se em seguida para Cajuru. Ali, conheceu, apaixonou-se e se casou com a cajuruense Marianna Bernardes da Silva, que nasceu naquela cidade no dia 17 de agosto de 1884 e foi sua companheira por quase 70 anos; ela era da linhagem dos Bernardes, que fez um Presidente da República (Arthur Bernardes). Segundo filho, Jeremias Machado Sobrinho (Filhinho) só chegaria quando Chiquinho tinha um pouco mais de três anos de idade, em 1908. Na seqüência vieram três mulheres: Maria, em 1911; Olídia, em 1915; e Benedita, em 1917. Orlando chegou três anos depois, em 1920; Laís, em 1922; e Dirce, em 1926. Pai enérgico, ele adorava os filhos, sempre procurando ter suas terras em locais próximos a escolas; de estatura baixa, era bravo, valente, de muita fibra, não levando desaforos para casa, mas muito trabalhador e honesto em seus negócios, senso de justiça que repassou aos filhos, que soube envolver em suas atividades. Elegante, andava sempre de paletó, terno azul marinho, e chapéu. Era muito católico.
Correto em seus negócios, não aceitava atos desonestos, e acabou muito prejudicado com a quebra do café, quando os preços caíram muito, e com isso ele perdeu as duas fazendas que tinha em Cajuru, herdadas do pai e do sogro. De lá, seguiu para o município vizinho, Guaraci, SP, onde se instalou por uns tempos. Certo dia, ele teve uma desavença com um agregado, José Bernardino, e seus dois filhos, e a discussão entre eles terminou num pequeno tiroteio, quando foram somados 18 tiros, dos quais cinco o atingiram; tempos mais tarde, já morando em Bebedouro, SP, é que retirou a última bala que ficara em seu corpo.
Em outro episódio, já na faixa dos 80 anos de idade, desentendeu-se com um empregado e o caso foi parar na Polícia. Quando os policiais foram à sua casa para prendê-lo – o que deixava sua mulher, Marianna, muito envergonhada –, ele teve uma reação que deixou a todos estupefatos: quando viu quem o denunciou lascou-lhe um tapa na cara, na frente dos policiais, que haviam feito, pouco antes, uma brincadeira com o denunciante, indagando se ele estava com medo era daquele velhinho.
Teve ainda a Fazenda Grande, no município de Paulo de Faria, SP, antes de se transferir, em definitivo, para Bebedouro, onde montou primeiro um açougue e depois uma padaria, além de ter tomado conta do sítio comprado pelo filho Jeremias. No quintal de sua casa ele criava duas éguas e uma mula; já nos anos 50, comprou uma carroça e, depois, uma charrete, com a qual passeava pela cidade, e ali ficou até o dia 12 de junho de 1975, quando morreu, aos 97 anos de idade, despedindo-se dos familiares de uma maneira que emocionou a todos:
– “Hoje é o Dia dos Namorados. Vou encontrar a minha namorada lá no Céu”.
Muito bonita e vaidosa, Marianna levou uma vida reclusa, pouco saía de casa, como opção que fizera para cuidar pessoalmente da filha caçula, Dirce, que, quando criança, teve meningite e paralisia infantil, e exigia atenção especial. Dedicada em tempo integral aos afazeres domésticos, ela cuidava da casa, dos filhos e do neto, José Narcizo, pois a mãe, Laís, morrera 45 dias depois de seu nascimento; fazia os serviços e a comida e ainda costurava para fora, confeccionando roupas masculinas, como uniformes para os alunos do Ginásio Estadual, calças e camisa; costurou até os 78 anos de idade. Incentivava a todos a estudar antes de se preocupar em casar, e morreu em 1971, aos 88 anos.
Chiquinho nutriu verdadeira admiração pela mãe, muito carinhosa e que trabalhava muito, além do cuidado especial para com a filha Dirce que, após o banho, ele carregava nas costas: nas comparações o parâmetro era sempre ela, afirmando: “Trabalhadora como a mamãe”. Em termos de beleza, a referência era a irmã: “Bonita como a Dita”.
Música e confusão
Benedita lembrava para a sobrinha e afilhada Heloísa, quando da visita que ela lhe fizera em Bebedouro, no início de 2006, ter cantado muitas vezes com o pai a canção “Chico mineiro”, que ele tanto apreciava, por gostar de música e porque ela retratava o meio em que viviam: o campo e suas circunstâncias. A conversa as emocionou e as duas, de repente, se viram de mãos dadas, cantando a história do Chico mineiro, que era também paulista, goiano …
Nessa noite de recordações, Dita contou outro episódio, quando ela tinha uns 13 anos, que marcou o relacionamento de pai e filho que se respeitavam, mas que tinham as suas diferenças, ambos muito firmes em suas posições, sem arredar um milímetro.
– “Um dia, depois de uma discussão forte, que não me recordo do motivo, papai expulsou Chiquinho de casa. Foi um tumulto grande. A mamãe ficou desesperada ao ver o filho arrumar as trouxas, arrear o cavalo e começar a se despedir; foi ao papai e rogou-lhe para não deixar o filho ir embora, e em seguida correu para o Chiquinho, implorando-lhe para ficar. As irmãs começaram a chorar e o ambiente ficou tenso. Nisso, sem saber como recuar e pedir ao filho para não ir e confuso com o tumulto que a situação criou papai foi a um ato extremo: pegou um revólver e o apontou para Chiquinho, dizendo para ele descer do cavalo, que não pediria novamente e caso insistisse em sair ele atiraria. A tensão aumentou e mamãe, ainda mais desesperada, tentou acalmar a ambos para evitar o pior. A situação somente se desanuviou diante da serenidade de Chiquinho que, muito apegado à mamãe e filho obediente, resolveu ficar.
No terceiro caso, ela tinha uns nove anos e se referia ao avô, Francisco Machado de Moraes, de quem herdara o rigor nas avaliações e a preocupação em manter a honra da família, fazendo justiça com as próprias mãos: na fazenda, os homens tinham saído para trabalhar quando chegaram “uns baianos”, como foram denominados os invasores, que “judiaram” das mulheres, como falaram na época, mataram porcos e galinhas, bateram nas crianças, e fugiram. No final do dia, quando chegaram da roça, estava aquele quadro desolador; de imediato, sob o comando do avô, armaram-se e saíram atrás deles, não deixando um único sobrevivente para contar a história.
Novo caminho
A partir daquele episódio, Chiquinho decidira seguir o seu caminho, afastando-se de seus familiares. Serenados os ânimos, como eram muito próximos, ele e o irmão Filhinho, que adquirira um caminhão, começaram a comprar mercadorias na Capital, São Paulo – tecidos, combustível, sal e mantimentos não produzidos nas fazendas –, para revender em cidades do Triângulo Mineiro. Nessa nova atividade foi criando raízes em algumas localidades próximas; tempos depois, cada um já traçava nova direção: Chiquinho se estabeleceu em Iturama, onde teve um açougue e depois foi sócio numa marcenaria, e negociava muito na cidade mais próxima, São Francisco de Sales, MG, onde conheceu Oda, a filha mais velha do respeitado dono do Cartório da cidade, José Porfírio de Carvalho (Juca). Logo estavam casados, com cerimônias em dois locais, ambas em janeiro de 1944: a primeira, civil, em São Francisco de Sales, e a segunda, religiosa, em Aparecida, SP, cumprindo promessa da mãe dele, Marianna, de casar todos os filhos naquele santuário.
Os filhos logo começaram a chegar. A primogênita, Laís, nasceu em São Francisco de Sales, no final do ano do casamento deles e recebeu como homenagem o nome da tia paterna, que morrera dias antes. O segundo, Heli, nasceu cinco anos depois, já em Iturama, e também teve seu nome em homenagem ao tio materno muito próximo deles. Heloísa chegou no ano seguinte, mas nasceu em Ituiutaba, MG, uma cidade de maiores recursos e para onde tinham se mudado os seus avós maternos. A caçula, Gláucia, nasceu sete anos depois, em Iturama.
Preocupado com a educação dos filhos, Chiquinho levou Laís – que passou a infância na casa dos avós maternos, em Campina Verde, MG, para estudar – para continuar os estudos em Bebedouro, onde moravam seus pais e que era uma cidade que oferecia mais recursos. Quando ia retornar ela começou a chorar; ele indagou-lhe se queria ficar ou ir embora; confusa, querendo ficar para estudar e ao mesmo tempo ir com ele para aproveitar a convivência, ela não dizia nada. Ele, paciente, adiou a viagem e sentou com ela para conversar: “Tinha muita afetividade e ao mesmo tempo era contido”, lembra Laís, explicando que ele tinha bons amigos, “mas amigos prá valer”. Gostava de contar histórias para os filhos dormir, e com a Gláucia, que chorava muito quando nasceu, ele cantava e dançava até ela se acalmar. Era liberal, na maioria das vezes concordando com os pedidos dos filhos, com os quais sabia se impor, nunca bateu em nenhum deles, nem mostrava a mão: bastava um olhar para eles entenderem; e não gostava de ver os sobrinhos brigando na frente do irmão, o que considerava um desrespeito. Tratava a todos muito bem, sempre defendia os mais fracos, não gostava de ver ninguém injustiçado, e também era muito prestativo, em especial com os vizinhos.
Orgulho e honra
Caprichoso em tudo que fazia, até na hora de descascar uma laranja fazia com um capricho só, com toda calma, sem machucar a fruta e tirando toda a casca; nunca começava a chupá-la antes. Fumou uns 50 anos, a partir dos 14, tentou parar, mas teve uma reação orgânica negativa e, por conselho médico, voltou ao vício; preferia os cigarros de palha aos de papel, com fumo da roça, em rolo. Não bebia.
Destemido, não tinha medo de nada, nem de morrer; nunca ficou doente, e passava tanta segurança que as pessoas acreditavam que nada podia acontecer a ele. Havia até a história de que quando algum rio transbordava e as águas cobriam as pontes, as pessoas ficavam esperando pelo Chiquinho, pois ele não tinha receio de enfrentar as águas furiosas. Um exemplo aconteceu quando, indo de Iturama para Campina Verde, chegou ao córrego Alazão, cujas águas não permitiam às pessoas saberem onde estava a ponte, e já tinha muita gente esperando alguém ter a coragem de atravessá-lo; e ele não se fez de rogado: tomou a dianteira e o atravessou, sendo seguido pelos demais, que estavam aguardando por sua iniciativa. Noutra ocasião, tinha tanto atoleiro que o caminhão virou, rodopiou e parou em sentido contrário ao que viajava.
A sua primeira fazenda se chamava Soledad, nome que retratava um pouco o seu estado de espírito, nostálgico, às vezes melancólico, pensativo, os olhos distantes, lembrando o passado; e a terceira e última fazenda era a Lageado, no córrego com esse nome, onde passava grandes temporadas. Ainda, teve uma fazenda no município de Itarumã, no Sudoeste goiano, com 200 alqueires, que não chegou a cultivar, mas ia todos os anos, de avião, pagar os impostos; ele a vendeu para receber em cinco anos e os compradores honraram o compromisso: todo ano levavam um saco de dinheiro para pagar a parcela. Tinha o dom para a matemática, para as conciliações de contas, atividade que lhe tomava um bom tempo, e que ele apreciava muito, o que motivou a filha Laís no gosto pelos números, como também nos netos Danilo Raya, Felipe Raya e Jales Naves Júnior.
Era orgulhoso, altivo, não gostava de comprar nada a prazo, só à vista e nem de ser cobrado. Esse rigor ele esperava dos outros, e essa ingenuidade acabou por fazê-lo perder a fazenda, a saúde e, como consequência, a vida. Comprara um trator para preparar a terra para o plantio e esperava pagá-lo com a venda do gado; só que, confiando nos compradores, acabou ficando no prejuízo, pois eles não pagaram e ele teve que vender o que tinha para honrar o compromisso com o Banco do Brasil.
– “Fico sem nada, mas não dou prejuízo a ninguém. Morro com o meu nome limpo”, dizia. Essa situação, de não conseguir receber o dinheiro da venda do gado e ainda ficar sem a fazenda, deixou-o desgostoso, fechando-se nas conversas sobre o assunto, mas sem lamentar, o que acabou interferindo em sua saúde, que foi complicando até ele morrer, em 1975, aos 70 anos. A pedido de seu pai, seu corpo, que estava em Uberaba, MG, foi trasladado para Bebedouro, onde foi velado e enterrado. Justino ficou o tempo todo ao seu lado, no velório, rezando.